sexta-feira, 29 de maio de 2020

Manifesto pela volta dos abraços.


O abraço, inaugura. Ele escritura todos os territórios percorridos, passo a passo, antes de ceder. Tudo, depois dele- a benção, a boca, ou o amor- são conseqüências. Ninguém se inscreve na alma de outra pessoa, sem que antes ela desarme as defesas na proteção de um abraço. É como se no começo de tudo fosse preciso testar o encaixe das partes, como um módulo lunar com uma única chance de acoplamento, ou se perder para sempre no infinito dos desencontros.
Nem muro, nem pedra, nem cerca, são capazes de proteger tanto nossas fragilidades quanto os braços abertos de quem nos recebe, cansados, depois de golpear os infinitos moinhos de ventos do viver. Em nenhum lugar cabe tanta vibração, na vitória; amparo, nas derrotas. Ou desejo, como mostram os casais que encostados a parede, celebram os corpos se confessando inevitáveis, abraçados. Nenhum retorno a proteção do pai, nenhuma reparação do amor de mãe, se faz fora do alcance dos braços estendidos, sem julgamentos, ou receios.

Por isso, é preciso não perder abraços. Porque os abraços se perdem em qualquer lugar, subitamente e, perdidos, nunca voltam ao mesmo rumo. Abraços se perdem, por vezes, em um telefonema esquecido, uma palavra mal dita, uma recusa, uma aspereza permitida. Eles se perdem na hora do crepúsculo em que se oram as ave-marias, e não se obtêm nenhuma resposta, na soberba, ou em qualquer ofensa de amor. Na falta de entusiasmo, e manutenção, como um vestido antigo deixado no armário; ou em uma dança em que o passo errado sentencia a dor e a queda, do desejo errante. Eles se perdem em qualquer filho que não se reconheceu, em inexplicável distanciamento.
Se perdem, nas mansões frias e nas ruas mais simples, de casas conjugadas, em que a intimidade é um bem comum. Nas ambições do dinheiro, na frivolidade das vaidades e rasura das invejas. Em uma promessa que esqueceu de ser cumprida, ou chegou fora de hora. Se perdem por razão nenhuma que um abraço é cheio de vontades incertas e costumam tremer no verão, ou diante de uma taça de vinho. Se perdem por excesso de beleza e pela falta dela, ambas, faces de uma mesma dominação. Ou quando aqueles olhos de campo de trigo, acordam, e fogem assustados.
Abraços, regeneram; abraços, são sacros, são dialetos, são a língua universal. São nossos tambores soando seus chamados ancestrais. São estações, a evitar nossa partida, ou a tornar-se a motivação de retorno. Abraços, tem efeito imunológico, diz a ciência; tem feitiços, dizem as crendices; tem milagres, dizem todos que já provaram de sua redenção. Abraços se perdem por medo de serem abraços, embora estejam destinados a isso. Abraços se perdem por não serem reconhecidos; se perdem, porque quando mais precisamos de abraços, não podemos curar ninguém.
O comércio precisa reabrir mesmo com pandemia, antes de quebrarmos, dizem todos; os abraços precisam voltar, digo eu, antes de nossa extinção. Fique em casa, se puder.

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