quinta-feira, 18 de junho de 2020

A fábrica brasileira de vacinas em construção há 30 anos

Em 1989, a Fundação Ataulpho de Paiva (FAP), instituição centenária dedicada ao combate à tuberculose, começou a construir em Duque de Caxias (RJ) uma nova fábrica para aumentar a oferta de uma vacina que só ela produz no país: a BCG, aplicada em bebês para prevenir a doença, e também a Onco BCG, usada especificamente no tratamento de câncer de bexiga.
Porém, mais de 30 anos depois do início da construção da fábrica em Xerém, bairro de Duque de Caxias, a instalação ainda não está pronta. Após sucessivos novos prazos, a fundação diz hoje que ela será inaugurada em 12 meses. Apenas nos últimos dez anos, o projeto da nova fábrica foi contemplado com pelo menos R$ 41,9 milhões em convênios com o Ministério da Saúde (confira mais detalhes sobre estes gastos públicos abaixo).

Já a atual fábrica da FAP no bairro de São Cristóvão, na capital fluminense, que nas últimas décadas produziu a vacina BCG utilizada por crianças no Brasil — com recomendação de vacinação universal pelo governo brasileiro e a primeira do calendário nacional de vacinação infantil, junto com a para hepatite B — foi interditada duas vezes pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde 2016.
O laudo da Anvisa que motivou a interdição em 2016, obtido pela BBC News Brasil via Lei de Acesso à Informação, diz que "a fabricação dos produtos Vacina BCG e Imuno BCG [a marca da Onco BCG feita pela instituição] pela Fundação Ataulpho de Paiva na fábrica localizada em São Cristóvão (Rio de Janeiro - RJ) apresenta risco à saúde da população brasileira e urge a necessidade de finalização das obras da nova fábrica da fundação localizada em Xerém".
Com as interdições na fábrica de São Cristóvão e sem a nova fábrica em Xerém funcionando, problemas no abastecimento atrasaram a imunização de recém-nascidos com a BCG nas maternidades e deixaram sem tratamento pacientes com câncer de bexiga que precisam da Onco BCG, como mostrou a BBC News Brasil em reportagens de julho e novembro de 2019.
No caso da BCG, comprada pelo Ministério da Saúde para ser distribuída em todo o país, o Brasil precisou recorrer emergencialmente a importações de uma fornecedora indiana, o instituto Serum. Com isso, hoje, a pasta considera que o fornecimento da BCG é regular no país, conforme afirmou na última sexta-feira (5) por nota.
Neste ano, houve sinais de que a vacina BCG da Serum pode se tornar mais do que uma solução temporária.
Em janeiro, servidores da Anvisa viajaram a Pune, cidade na Índia onde fica a sede da Serum, para uma inspeção das chamadas Boas Práticas de Fabricação. Em abril, foi emitido pela Anvisa um Certificado de Boas Práticas para a BCG da Serum — um primeiro passo para a participação da produtora estrangeira, através de uma empresa brasileira detentora do registro, em licitações para compra da BCG pelo Ministério da Saúde.
Hoje, a FAP é a única produtora da vacina no Brasil e, por isso, as compras de lotes de BCG pelo governo federal foram feitas nos últimos anos através da modalidade "inexigibilidade de licitação" — prevista na lei das licitações quando o fornecimento só pode vir, por alguma razão, de um único produtor.
Já a Onco BCG tem fornecimento descentralizado — ou seja, hospitais credenciados fazem a compra do material e depois são ressarcidos pelo Ministério da Saúde, uma vez que o acesso ao tratamento é considerado um direito no âmbito no Sistema Único de Saúde (SUS). Sem o produto nacional produzido pela FAP, hoje muitos pacientes estão sem tratamento, enquanto quem pode recorre a importações que podem custar milhares de reais.

Verbas do Ministério da Saúde e empréstimo do BNDES

Mas, além das compras de doses pelo governo, a FAP recebeu por meio de convênios milhões de reais ao longo dos anos para construir sua nova fábrica em Xerém.
Criada em 1900 como Liga Brasileira Contra a Tuberculose, a fundação, que depois passou a homenagear em seu nome seu presidente perpétuo, o magistrado Ataulpho de Paiva (1865-1955), é considerada uma entidade privada, sem fins lucrativos e filantrópica.
Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e consultas ao Portal da Transparência, a BBC News Brasil identificou convênios do Ministério da Saúde com a entidade que somam R$ 41,9 milhões e destinados especificamente à nova fábrica em Xerém — este é valor total previsto nos contratos, mas valores celebrados em um convênio são diferentes do que foi efetivamente liberado ao longo do tempo. No caso destes convênios, R$ 19,5 milhões (46,5%) foram efetivamente liberados até hoje. Todos eles constam como ainda em vigência ou na fase de prestação de contas.
Na realidade, esse montante é possivelmente maior, já que a reportagem solicitou ao ministério dados dos gastos com o projeto desde os anos 80, mas só recebeu informações sobre convênios a partir de 2012. Assim, a reportagem decidiu considerar apenas os contratos com detalhes e valores aos quais conseguiu ter acesso e que mencionam explicitamente a nova fábrica de Xerém. Há também pelo menos dois contratos, um de 1991 e outro de 2008, que foram mencionados pelo ministério em resposta à LAI como sendo destinados à nova fábrica, mas sem valores do montante concedido nem detalhes do convênio. Estes também não foram encontrados no Portal da Transparência — portanto, não foram contabilizadas na reportagem.
Em uma solicitação de verbas para obras, que acabou sendo concedida por meio de um convênio de R$ 8,4 milhões (dos quais R$ 2,4 milhões já liberados), a própria instituição aponta em um documento de justificativa a data de início das obras, 1989.
"Ressaltamos que, a Fundação Ataulpho de Paiva - Liga Brasileira Contra a Tuberculose, é uma instituição que dedicou 116 anos de existência ao combate à tuberculose, e tornou o Brasil sempre autossuficiente na produção da Vacina BCG, nunca tendo havido a necessidade de importação deste produto", diz a fundação na proposta de 2016 cadastrada na Plataforma Mais Brasil.
Um texto de 2003 no site da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) menciona que a obra recebeu também verbas do governo estadual do RJ para ser finalizada, com previsão para funcionamento em 2005. Um convênio de R$ 5,4 milhões, segundo o texto, foi assinado naquele ano entre órgãos do governo federal e a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do RJ. A reportagem pediu aos órgãos envolvidos a confirmação disto, mas não recebeu resposta.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também ajudou a financiar a obra da nova fábrica prometida. Em 2011, o banco público emprestou R$ 5,9 milhões à Fundação Ataulpho de Paiva por meio de um programa do Ministério da Saúde que visava desenvolver e modernizar o parque industrial brasileiro na área da saúde.
Segundo o contrato de financiamento obtido pela reportagem, a entidade pediu o valor para finalizar a construção e comprar novos equipamentos para a produção da vacina. O dinheiro colhido com o banco representava 43% do que a fundação declarou precisar para concluir a obra.
Nesse caso, a fundação deveria obrigatoriamente devolver o dinheiro ao banco em 72 vezes parcelas a partir de abril de 2013, segundo o contrato. O BNDES não informou se o empréstimo já foi pago, pois a divulgação da informação "violaria o sigilo bancário" da entidade.
Em nota, o BNDES afirmou que constatou a aplicação "correta" da verba por parte da FAP. Porém, diz o banco, "para o pleno funcionamento da fábrica, foram feitas novas exigências de equipamentos pelo órgão regulador (Anvisa). Estas exigências demandam investimentos adicionais. Não houve nova solicitação de crédito ao BNDES."
Na justificativa do convênio de R$ 8,4 milhões celebrado em 2016, a FAP diz ainda que não só recebeu verbas do ministério e empréstimo do BNDES, mas também recursos financeiros "com participação da JAICA - Japan International Cooperation Agency": "A Fundação Ataulpho de Paiva iniciou a construção de sua unidade fabril em Xerém, Duque de Caxias, Rio de Janeiro, em 1989, recebendo recursos financeiros do Ministério da Saúde, com participação da JAICA - Japan International Cooperation Agency e com recursos próprios".
Procurada, a representação em Brasília da agência de cooperação japonesa, cuja sigla na verdade é JICA e não JAICA como diz o documento, afirmou por email não ter registro de tal financiamento.
A diretoria da Fundação Ataulpho de Paiva afirmou que o empréstimo obtido no BNDES "se encontra em fase final de pagamento, faltando apenas cerca de 10% do valor financiado". Já o suporte da JICA ocorreu por meio de "apoio técnico" de um médico da agência no início do projeto, "sem envolver recursos financeiros", segundo escreveu a FAP à reportagem.Click aqui e continue lendo matéria no BBC News Brasil.

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