segunda-feira, 13 de julho de 2020

Dessa vez vai dar certo, filhos


Certa vez, exausto do trabalho, ao chegar em casa, e ser consumido pelos chamados de meu filho e energia e “habilidade de comunicação” – segundo a Coordenadora Pedagógica, do colégio- de minha filha, propus irmos dormir e nos encontrarmos nos sonhos, assim, nós a seguraríamos na bicicleta sem rodinhas, pelo tempo que desejasse. Um dia, ela me disse que não estava dando certo porque por mais que fechasse os olhos com força não me encontrava.
Filhos são criados para irem embora e, eu sei- eu nunca voltei-, não costumam voltar para casa. Os meus, por artes da vida, foram estudar em Campinas. Primeiro, o último, e por último, o primeiro. Todos sabem que filhos são grandes quando presentes e enormes quando se ausentam e as paredes apenas emolduram a memória. Eles vão com a naturalidade com que Pelé enganou o goleiro uruguaio com o corpo, no maior lance do futebol de todos os tempos, e nos deixam perplexos e perdidos em afazeres domésticos, erguendo cordilheiras de isopor que nos protejam das saudades.

Agora, com a quarentena do fim do mundo, estamos mais isolados. Eles lá; eu, aqui. Os aviões no solo. O vírus acima de todos. No começo, passava o dia recomendando máscara, álcool gel, e distanciamento social, mas eles não entendem a preocupação. No segundo mês sugeri que continuassem doando a gorjeta aos motoboys, mas sem pedir tanto comida nos aplicativos, essa invenção de Deus e do Diabo, em um consórcio de intenções.
No terceiro mês do diário de bordo estelar me contentava em pensar que a força com eles, estaria, e tudo ia ficar bem. Algumas vezes, rezei escondido para que fossem protegidos, que pandemia é temor pouco racional. Noutras, praguejei, que a vida não pode ser cancelada, e que não foi a coisa certa deixá-los ir tão cedo, mas tô ligado que isso não tem nada a ver, véi, me diriam eles nessa língua similar ao português que os jovens usam.
Então, o tempo foi fazendo as coisas que o tempo sempre faz, mesmo nesse ano que nunca aconteceu, e vieram os aniversários. Primeiro o dela, que é a última; por último, o dele, que é o primeiro. E estivemos distantes, por proteção. Nós, a eles; eles, a nós, como tem de ser. Conformado e distanciado, me contento em esperar os sinais de vida: que meu filho grave algo em sua guitarra, para um garoto que acreditava nos Beatles, como eu; que minha filha mande mensagem dizendo que perdeu de novo o cartão, o que a deixa sem respirar. Enfim, qualquer sinal do planeta deles na sua órbita natural, para o meu, na sua órbita confinada.
A pandemia nos trouxe distâncias demais, palavras fragilizadas, e cenas impedidas de acontecerem, para milhares de pais. Penso neles nessa madrugada em que o sono não vem. Cansado, imagino que, se eu deitar, e apertar bem os olhos com força, talvez possa reencontrá-los naquele sonho para continuarmos pedalando à noite naquelas ruas levemente frias, da última vez. O pensamento me abraça. Vou dormir. Não se assustem se alguém os acordar, aviso. Sou eu. Vai dar certo, dessa vez.

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