segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A “Levada do Burro”

Tudo começou com um burro que César Cão ganhou de presente, de Wilson Cabeleira. Só que o presente só chegou até a metade do caminho e empacou. Ficou num terreno de Louro, dono de um bar lá no Magalhães, no mui formoso município de São Gonçalo dos Campos, no interior da Bahia. E César Cão estava procurando um reboque pra levar o bicho até a sua “Granja do Torto” (nome mais apropriado nunca vi), um lugar belo e aprazível, localizado às margens do lago de Pedra do Cavalo.

Foi então que César Cão caiu na besteira de perguntar ao seu amigo, Caguto, se ele conhecia alguém que teria um reboque para lhe emprestar. Sabedor da finalidade, Caguto questionou: “Conheço sim. Mas você vai levar esse burro assim, impunemente”?

César entendeu logo o que se passava pela cabeça do amigo e, como também gosta da gandaia, completou: “É mesmo, né? Tem que fazer alguma coisa”.

E foi assim que surgiu a “Levada do Burro Elétrico”. Para os não iniciados nos mistérios dessa terra, na Bahia tudo é motivo para festa. Reuniões foram feitas (no Boteco do Vital, é claro), uma comissão organizadora foi formada, cada um com suas atribuições e, no dia marcado, todos nós estávamos lá, a postos.

O burro, carinhosamente batizado de “Luneta”, estava todo empertigado. Arreios novos, flor atrás da orelha, carroça novinha em folha, uma graça.

Zé de Bola, um anão, que era um gigante no cavaquinho, com sua banda animava a festa no bar de Louro, ponto de partida da “Levada”.

Foi então que Dito me pediu pra dar uma carona pra sua namorada, porque ele tinha que ir mais cedo para fazer uns preparativos (tempero é com ele mesmo). Cheguei cedo no Boteco do Vital e a loura já estava me esperando, com uma prima, mais loura ainda. Resolvemos tomar uma cerveja antes de ir para o bar de Louro. Foi aí que Wilson Cabeleira apareceu, todo troncho, segundo ele, atacado de terrível dor na coluna.

Porém, ele reconheceu, na prima da loura, uma antiga amiga. Sentou, começou a conversar, dizendo que não poderia ir à Granja do Torto, pois sentia muitas dores, e por aí foi, jogando conversa fora. Chegada a hora de partir, ele sentiu uma súbita melhora, foi em casa, vestiu a camisa (ah! Esqueci de dizer. Foram confeccionadas camisas com desenho do burro e tudo mais, como manda o figurino), e lá veio o Cabeleira pronto para a festa.

No Magalhães a concentração já era grande, apesar da chuva fina que caía. Zé de Bola mandava ver no cavaquinho e a galera se animava. Chegada a hora, partimos para a Granja do Torto, em comitiva. A estas alturas, Cabeleira já tomava umas e outras e a coluna melhorava a olhos vistos. O percurso transcorreu sem incidentes e, na Granja do Torto, nos aguardava uma lauta feijoada.

Foi uma grande festa. César Cão, como sempre, um perfeito anfitrião. Feijoada deliciosa, cachacinha do alambique (reserva pessoal e especial), música boa no ar. “Luneta”, o dono da festa, se refestelava na grama verdinha, em placas, que César havia mandado plantar só pra aquela ocasião. Foi um dia, digamos assim, perfeito. Mas, quando a tarde já caía feito um viaduto e eu já me preparava para voltar pra casa, comecei a me despedir do povo e, quando já ia saindo, vi uma cabeça se destacar na multidão que dançava.

A banda estava tocando, num ritmo frenético, e no salão muitos casais dançavam. Parei um pouco pra observar aquela cabeça que subia e descia no meio do povo, quase batendo na cumeeira. Percebi então que era o meu amigo Wilson Cabeleira, que dançava e pulava ao redor da prima da loura, completamente restabelecido da dor cervical.

Fiquei feliz por saber que ele estava bem, e mostrei pra Caguto, como ele já estava melhor. Ele se limitou a comentar:

“É, o que uma xereca não fizer, nada mais faz”.

NE: Crônica publicada no livro A Leva da Égua, em 2004

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