segunda-feira, 10 de maio de 2021

Crônica de segunda-feira: A vida por trás dos óculos

 Demorei um pouco ao nascer, mas tenho certeza que foi porque não consegui achar meus óculos naquele redemoinho placentário, e tive que esperar ser levado pela correnteza. Então, se tive vida antes dos óculos apaguei da memória, talvez, por não ter visto o que aconteceu. Especialistas apontam que metade da população usará óculos por volta de 2050. Ficaremos a uma armação de sermos maioria na sociedade e iremos tão longe quanto a vista alcançar.

Acho que usar óculos causa grande impacto na formação intelectual e sexual. No meu caso, ele inibiu duas vocações. A primeira, de jogador de futebol, pois, a bola foi ficando indistinguível. Comecei como centroavante e fui recuando até goleiro, mas um frango histórico foi a humilhação terminal. Jogando na linha vivia o drama de tirar os óculos para cabecear e errar o alvo, ou manter os óculos, quebrar de novo a armação e ultrapassar a marca de três surras dadas por minha mãe.

A outra, foi de cirurgião. Além de míope sou alérgico e a combinação é terrível, com a coceira incontrolável da máscara e embaçamento dos óculos. Teria de contratar uma auxiliar só para fazer trocas durante o ato cirúrgico evitando algum frango com o bisturi nas coronárias do paciente. Sem os esportes, me dediquei aos livros que me fizeram assim desse jeito sem perder a ternura jamais.

Além disso, somos os últimos a arranjar uma namorada. Eu mesmo só cheguei lá depois que noivei com três bananeiras do meu quintal. Como as mulheres bem sabem, nós somos mais esforçadinhos em cuidar delas.

No mundo atual, em que não basta manter os olhos abertos, mas enxergar as coisas às claras, perder os óculos vira um drama, afinal, precisamos dos óculos para acharmos os óculos. Me impressiona que já estejam fazendo vôo de drone em Marte e ainda não tenham inventado um sinalizador, um waze, que guie um ao encontro do outro- mesmo que esteja dentro da geladeira- sem atropelar tudo no caminho.

Meus filhos nasceram com problemas oculares. O menino levou de boa; minha filha demorou de aceitar. Pegava nos óculos mil vezes por dia, e ele ficava impregnado de digitais. Toda vez que chegava em casa dizia imediatamente:

- Lava meus óculos, pai

- Pronto filha, passei sabão porque estava muito sujo e gorduroso e enxuguei.

- Ô pai, é tão bom quando você limpa. Cê nem imagina, parece que vejo outro mundo.

Crescemos assim, eu tentando fazê-la ver o mundo como era, até que passou no Vestibular de Medicina, em Campinas, e eu disse que ia morar lá sozinha para estudar. Ela só perguntou:

- Mas pai, quem vai lavar meus óculos?

O que precisava ser feito tinha de ser feito, mas ja fazem muitos anos, filha. É hora de voltar. Eles devem estar muito sujos.

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