terça-feira, 12 de agosto de 2025

Felca e a geração que viu e não questionou

Lia Sérgia Marcondes
Nos anos 90, eu vivi a transição da pré-adolescência para a adolescência. Naquela época, o termo “pré-adolescência” mal circulava fora dos textos acadêmicos. Para a maioria das pessoas, a vida se resumia a quatro etapas: infância, adolescência, vida adulta e velhice.

Nesta mesma época, a TV aberta brasileira exibia, sem pudor, crianças imitando danças erotizadas de grupos como “É o Tchan” (e ninguém parecia achar estranho). Nas tardes de domingo, mulheres quase nuas, fantasiadas como se tivessem saído de um sex shop, ocupavam a tela. Tiazinha, Feiticeira, concursos de camisetas brancas molhadas, disputas pela “maior bunda”, e até versões “mirim” de grupos de pagode cantando letras de duplo sentido impróprias para menores. 

Era uma época em que eu via tudo aquilo e me sentia absolutamente desconfortável. Não podia estar certo. Ao meu redor, os adultos riam e achavam “fofíssimo” ver uma criança de cinco anos “ralando na boquinha da garrafa”. Mas me faltavam compreensão e repertório para manifestar meu desconforto e estranheza.

Na real, as meninas da minha geração cresceram bombardeadas com revistas “teen” que exaltavam corpos esquálidos e entrevistas em que atrizes adolescentes falavam sobre como conquistar garotos, perder o “bv” (vulgo, “dar o primeiro beijo”) e a virgindade. Na TV, Silvio Santos perguntava a uma Maísa de seis anos se ela tinha namorado e ninguém via problema. Jornalistas questionavam uma Sandy adolescente sobre sua vida sexual, e isso passava impune. Antes disso, na geração de nossas mães e avós, meninas de 15 ou 16 anos já se casavam e, aos 30, uma mulher solteira tinha “ficado para titia” (ou seja, velha demais para o matrimônio).

Este é o pano de fundo, a herança cultural, que formou adultos incapazes de enxergar a violência simbólica da sexualização precoce de crianças e adolescentes. Aqueles que não desenvolveram senso crítico para perceber o absurdo daquele ambiente televisivo, agora não se incomodam ao ver meninas de 10 anos dançando funk, ouvindo MC Pipokinha ou consumindo vídeos como os de Hytalo Santos.

ADULTIZAÇÃO

Felca. Foto: Lia Sérgia Marcondes/Reprodução/Drops

Se você não  vive isolado na floresta ou sem acesso à internet, deve ter ouvido o nome “Felca” algumas vezes. Seu vídeo “Adultização”, publicado no último dia 7, até o momento em que escrevia este texto, conta com 27 MILHÕES de visualizações. (Se não viu, clica aqui e assiste. E compartilha. É importantíssimo.)

No vídeo, o Felca fez o que muita gente não teve coragem: chamou de ‘adultização’ o que muita gente ainda insiste em chamar de ‘conteúdo’. E o problema não está restrito aos personagens que ele usou como exemplo em seu vídeo, para criticar a erotização precoce de crianças e adolescentes. É sobre o padrão nojento, que já foi normalizado desde antes do surgimento das redes sociais, e que ganhou projeção e amplitude com o advento da internet: vestir criança como adulto, colocar adolescente pra performar sensualidade e vender isso como se fosse entretenimento inofensivo. Spoiler: não é.

Roubar etapas fundamentais da formação humana é irreversível. Curtidas não pagam terapia, tampouco devolvem a inocência perdida. Infância e adolescência não são versões beta da vida adulta. Quando forçamos um menor de idade a sustentar o olhar e o desejo de um público adulto, estamos jogando essa criança num campo de batalha emocional e psicológico sem armadura alguma.

Felca apenas acendeu a luz. E, como era de se esperar, o que se viu foi um verdadeiro “barata voa” nas redes sociais. Se o vídeo encerrar a “carreira” de certos influenciadores, não vejo motivo para lamento. Porque, sejamos honestos, talvez essa carreira nunca devesse ter existido. 

dropsdejogos

*Lia Sérgia Marcondes- Mulher, mãe, cozinheira e jornalista, não necessariamente nessa mesma ordem.


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