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Lia Sérgia Marcondes |
Nesta mesma época, a TV aberta brasileira exibia, sem pudor, crianças imitando danças erotizadas de grupos como “É o Tchan” (e ninguém parecia achar estranho). Nas tardes de domingo, mulheres quase nuas, fantasiadas como se tivessem saído de um sex shop, ocupavam a tela. Tiazinha, Feiticeira, concursos de camisetas brancas molhadas, disputas pela “maior bunda”, e até versões “mirim” de grupos de pagode cantando letras de duplo sentido impróprias para menores.
Era uma época em que eu via tudo aquilo e me sentia
absolutamente desconfortável. Não podia estar certo. Ao meu redor, os adultos
riam e achavam “fofíssimo” ver uma criança de cinco anos “ralando na boquinha
da garrafa”. Mas me faltavam compreensão e repertório para manifestar meu
desconforto e estranheza.
Na real, as meninas da minha geração cresceram
bombardeadas com revistas “teen” que exaltavam corpos esquálidos e entrevistas
em que atrizes adolescentes falavam sobre como conquistar garotos, perder o
“bv” (vulgo, “dar o primeiro beijo”) e a virgindade. Na TV, Silvio Santos
perguntava a uma Maísa de seis anos se ela tinha namorado e ninguém via
problema. Jornalistas questionavam uma Sandy adolescente sobre sua vida sexual,
e isso passava impune. Antes disso, na geração de nossas mães e avós, meninas
de 15 ou 16 anos já se casavam e, aos 30, uma mulher solteira tinha “ficado
para titia” (ou seja, velha demais para o matrimônio).
Este é o pano de fundo, a herança cultural, que formou
adultos incapazes de enxergar a violência simbólica da sexualização precoce de
crianças e adolescentes. Aqueles que não desenvolveram senso crítico para
perceber o absurdo daquele ambiente televisivo, agora não se incomodam ao ver
meninas de 10 anos dançando funk, ouvindo MC Pipokinha ou consumindo vídeos
como os de Hytalo Santos.
ADULTIZAÇÃO
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Felca. Foto: Lia Sérgia Marcondes/Reprodução/Drops |
Se você não vive isolado na floresta ou sem acesso
à internet, deve ter ouvido o nome “Felca” algumas vezes. Seu vídeo
“Adultização”, publicado no último dia 7, até o momento em que escrevia este
texto, conta com 27 MILHÕES de visualizações. (Se não viu, clica aqui e
assiste. E compartilha. É importantíssimo.)
No vídeo, o Felca fez o que muita gente não teve coragem:
chamou de ‘adultização’ o que muita gente ainda insiste em chamar de
‘conteúdo’. E o problema não está restrito aos personagens que ele usou como
exemplo em seu vídeo, para criticar a erotização precoce de crianças e
adolescentes. É sobre o padrão nojento, que já foi normalizado desde antes do
surgimento das redes sociais, e que ganhou projeção e amplitude com o advento
da internet: vestir criança como adulto, colocar adolescente pra performar sensualidade
e vender isso como se fosse entretenimento inofensivo. Spoiler: não é.
Roubar etapas fundamentais da formação humana é
irreversível. Curtidas não pagam terapia, tampouco devolvem a inocência
perdida. Infância e adolescência não são versões beta da vida adulta. Quando
forçamos um menor de idade a sustentar o olhar e o desejo de um público adulto,
estamos jogando essa criança num campo de batalha emocional e psicológico sem
armadura alguma.
Felca apenas acendeu a luz. E, como era de se esperar, o que se viu foi um verdadeiro “barata voa” nas redes sociais. Se o vídeo encerrar a “carreira” de certos influenciadores, não vejo motivo para lamento. Porque, sejamos honestos, talvez essa carreira nunca devesse ter existido.
*Lia Sérgia Marcondes- Mulher, mãe, cozinheira e jornalista, não necessariamente nessa mesma ordem.
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