domingo, 15 de janeiro de 2023

 


*Rindo de mim mesmo* 

 

Aind’ há no mercado,

o sempre lembrado,

empacotado, chamado

Macarrão Letrado.

Naquele tempo - para começo de conversa recorro à fórmula hipnótica das parábolas - naquele tempo, em dias de solstício do inverno, os velhos da família aprontavam inesquecíveis momentos para aquecer as noites frias. Vivia eu, então, ao sul, bem abaixo do trópico de Capricórnio, sob a guarda de meus avós maternos. 

À hora da Ave-Maria, sol sumido por aquelas bandas, programa radiofônico via ‘onda curta’, o velho avô acompanhava a reza, abria o pacote, derramava uma porção macarrão letrado sobre a mesa e lançava o desafio: “Quero ver, hoje, quantas palavras você faz com estas letrinhas”. E lá permanecia eu, por uma hora, distraído e feliz da vida, em meio a um mar de vogais e consoantes. 

Desde a tenra infância, sou fã de canja de galinha. Não falo de sopa com partes carnudas da pobre ave. Para mim, canja é algo distinto. A canja da ave pobre para ser saborosa e nobre, deve ser composta por “miúdos” - partes íntimas e outras nem tanto - mais asinhas, pescoço e suas peles, mais pernas-pés amarelados de unhas aparadas, responsáveis pelo delicado sabor e pela vida cromática da iguaria, em contrapartida ao branco desmaiado do arroz, indispensável à obra d’arte. 

Minha avó foi mestra em tal riscado. Em dias de macarrão de letrinhas, por mim apreciado em letras sobre a mesa e não tanto enquanto sopa, a velha seduzia-me: “Se você tomar esta sopinha vai ficar inteligente”. Rendia-me. Talvez, na vã esperança de um dia, quando nada, pudesse falar da experiência, em bate-papo como agora. 

Montar letras e daí palavras na composição de um texto atraente é algo detalhista, como fazer-se canja à moda antiga. Nisso, Prima Luíza revelou-se exímia, ‘solsticiando’. 

Prefaciada a sopa de hoje, aproveito “a bruma leve das paixões que vêm de dentro”, embalo as recordações acima, mais um ou outro agasalho para encarar o frio, asas à imaginação, alço voo em direção ao habitat de meus correspondentes. 

Assim, se ao escrever “liberdade se consente”, sinto-me à vontade para ouvir os sopros de Éolo segredarem-me o quanto ora psicografo. Em verdade o invocara, ao manobrar um apelativo olhar rumo ao azul de Urano, filho da Noite e descendente de antigas divindades, entre elas Éter. Éter, o ar puro aspirado pelos deuses, longe de ser o ar poluído cedido aos mortais. Mitológicas premonições. Aí reside a magia dos sopros eólicos. Lástima é a mesma não se reproduzir nos atuais gigantes ventiladores de geração de energia que, de Éolo, só mantém o gentílico ‘eólica’. Deuses também têm suas limitações. 

Portanto, o que ora aspiro são emanações de um ar divino, aromas evolados do apetitoso prato servido por Prima Luíza, sopa de letras rica em nutritivas e poéticas contemplações e testemunhos. 

Letras! Sou cativo dos voltados ao culto do idioma, quando sem perder de vista a mensagem estética, deixam entrever flagrantes da vida real. Sinto-me tão prisioneiro, quanto todos nós – tempos de pandemia - ora nos encontramos. ‘Ergastulados’, como bem lembrou a escritora da Imperatriz Leopoldinense.

 Mãos à massa, pois, em dominical manhã, na qual o nada a fazer se converte em muito a dizer. 

Equinócios e solstícios sempre foram, e continuam sendo, datas mágicas. Graças a elas, a raça humana do planeta Terra adorou deuses e deusas nascidos nas inclinações astronômicas dos giros ao redor do Sol. Deidades muitas perdidas no tempo, ainda enchem de inspiração nossas vidas, como ocorreu com Prima Luíza, e o fez, pelo relatar dos fatos, alentada por vapores de outra divindade, capaz de provocar espasmos criativos. 

Para tanto, mulher e marido juntaram taças. 

Abro um parêntese.

Não costumo usar “esposo, esposa”, substantivos tradicionais e litúrgicos. Aprecio “marido, mulher”, contexto laico, mais de acordo com os tempos atuais.

Acho démodé o cidadão ao apresentar a cara-metade, empertigar-se e afirmar: “Quero ter o prazer de lhe apresentar minha esposa” (engrossando a voz ao dizer esposa, como se a palavra contivesse uns três circunflexos sobre a letra ‘O’).

Marido apresenta “minha mulher”; mulher apresenta “meu marido”. Curto e grosso e estamos conversados.

Além do mais - sem ser irreverente - julgo ‘esposo’ bem adequar-se ao castíssimo carpinteiro José. José sabia ser sua mulher, Maria - então nem lia - optante por outro DNA, mágico, para constituir família. A velha magia, sempre presente na história da humanidade.

Fecho o parêntese. 

Voltemos às taças frias. 

Tim-tins para incorporar a audição ao ato - único sentido ausente nas bebidas - excursão com destino à geladeira onde, ao andar superior, acomodava impacientes amigas branquelas, tamanho P, recém-apresentadas ao casal. Imensa era a tentação pela novidade, o que induziu a dupla, em alto astral, a deixar no abandono as ‘louras holandesas’, estatura G. 

Conversa vai, cerveja vem, marido e mulher, não se aperceberam tamanho não ser documento e quanto, as amigas branquelas com seu adocicado perfume seduziam.

 Ao imaginar o contexto, tendo em mãos o belo tratado de Prima Luíza acerca do acontecido, fui acometido de boa inveja. Justifico. 

Minha mulher a quem, por gaiatice, refiro-me como Dª. Linda, nada bebe, por isso bebo mais ainda. Por mim e por ela. Assim, sou eu quem ‘cinderela’. Ela, “Eu avisei! Eu avisei!” Não há casamento perfeito.

 Quando bato o copo contra a garrafa, tornando pleno o inebriar, ela – Da. Linda – se faz de mal entendida, bem sabendo, quando me avenho com as Devassas - injusto nome das discretíssimas damas - consagro minha tese: ‘eterizam’ a mente. 

Portanto, sem retardar o preparo da sopa nem devassar demais o passado, sigo no aprendizado de harmonizar palavras para, lá na frente, ser mestre na arte dos gostos festejados 

Não se perca de vista, eu ser um pisciano avoado e, como tal, adoro estar de bem com a vida. Só deixo de sorrir, quando a melancolia chega sem aviso prévio. Mesmo assim, bastam alguns tim-tins solitários com as louras ousadas, para abrandar o imprevisto impasse. Vezes muitas, antes de ‘cinderelar’, há tempo para captar em atos ou fatos, um esgar de humor liquefeito em palavras, pois, tudo quanto se presencia e vive nesse “mundo de meu Deus” seria cômico, se não fosse trágico.



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