domingo, 17 de dezembro de 2023

 


*Tempo sem lamentos *
 

 

Ao completar oitenta anos em 2021, senti-me como se houvera sido o navegador luso Bartolomeu Dias quando, em 1488, contornou o Cabo das Tormentas:  não imaginar quanto o aguardava após completar o feito épico. 

Após a temerosa volta ao sul do continente africano, as violentas tempestades - então supostas - ao se fincarem pés na região ignota, tinham similar significado ao das imprevisíveis consequências da pandemia presente mundo afora. 

         Nem nos piores momentos, em sonhos mal sonhados, antevi o lutuoso cenário, obstáculo à concomitante festividade – programada para a cidade de Maceió -   alusiva a meus 80 anos e aos 60 da filha que lá reside - com filhos e filhas, netos e netas, bisnetos e bisnetas e seus respectivos pais, pares, quejandos e outros tais.

         Ante o andar da carruagem-tempo, são assíncronos os cronômetros de nossas vidas. Assim, viver não só corresponde à experiência exterior decorrente de um mundo em constante rodopio - sol, chuva, frio, calor –, vezes avessa a nossos desejos, mas relaciona-se também com a experiência interior, alheia ao que nosso faro fareja. Falo do campo do viver conosco mesmos, onde volta e meia, conflitantes sentimentos se digladiam. 

Em tal assincronia, emersos ou imersos, navegamos: duas concomitantes viagens em distinto tempo-espaço. Devo anotar, por oportuno, ter sido a experiência independente das circunstâncias envolventes que me traz agora até aqui. 

Verdade, ao retroceder eu, no oceano das idades, haver encontrado mais calmarias do que tempestades. 

Homem de sorte, com outros convivi e deram-me norte.

São vulgos-ventos sem nomes; em sonho, simples pronomes. 

Um deles, suíço, após a desdita da viuvez se fez jesuíta. Foi meu mestre em Teologia Dogmática. Tal ente, amadurecido e crente, mais cuidava da vida chã dos casais que da existência de algo mais. Dizia ele: “O segredo do casamento, reside nas pequenas atenções”. Desnecessário, penso, descer a detalhes.

         Outro jesuíta - este de tempos barrocos - o espanhol Baltasar Gracián - 1601/1658, (“A arte da prudência”: livro de aforismos), para mim verdadeira bússola. Ajudou-me inclusive, após voltear o Cabo das Tormentas, rebatizá-lo por Cabo da Boa Esperança.

         Sem bolo, sem fogos, sozinho, sem festas. Malgrado a (im) pertinente solidão, fiz-me feliz e satisfeito, a ponto de tecer esta rede de palavras, atracada aos pilares da varanda de meus estares. No embalo dela me esbaldo e reconheço nossas vidas serem longas demais em relação à maioria dos alvos de nosso amor dedicado:  plantas, pássaros ou os incontáveis gatinhos - alegria em conviver com eles. São minha companhia em tempos de pandemia: sem máscaras, distanciamento ou agonia. 

É indubitável: dúvidas me assaltam. Mormente quando são desencontrados os comportamentos daqueles que devem balizar a coletividade. 

Navegar é preciso, alegam alguns, atracar é necessário, alegam outros. Ante tal divergência acobertadora de interesses vários, relações de amizade têm sido postas em xeque. 

Passei a duvidar, se as árvores por mim plantadas serão bastante para sombrear braças do que amo e chamo chão. Isto pela razão absurda e fatídica de vivermos tempos quando nos cemitérios plantamos mais homens do que flores. 

Pétalas de esperança minha foram-se ao léu: uma espécie de pagamento pelo privilégio de muito viver. 

Razão, tem Rachel de Queiroz quando, em uma de suas crônicas, anota: “A vida é uma coisa que tem que passar, uma obrigação que é preciso dar conta. Uma dívida que vai se pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo (passado), quando se devia muito mais”. 

Deixo, portanto, de lamentar o tempo.

Lastimo somente, é não estar com os que me alentam e prestigiam com suas leituras:  para abraçá-los e dizer-lhes que sem isto, a esta altura da vida, não teria valido a pena tê-la até aqui vivido.

         Viajo, assim, ao embalo da eterna juventude concebida por Gilberto Freyre: “Se depender de mim, nunca ficarei plenamente maduro, nem nas ideias, nem no estilo, mas sempre verde, incompleto, experimental.” 

Ratifico, dato e assino.



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