Exposição da intimidade, amores
descartáveis, depressão, silenciamento, loucura, suicídio. As relações
humanas e seus conflitos dão o tom de como a saúde mental é percebida
hoje em dia: muito mais por sua ausência ou pelo adoecimento do que pelo
cuidado com ela.
Por mais que a preocupação com o bem-estar
psíquico esteja em voga, o sofrimento subjetivo, que é inerente à vida
de cada pessoa, não tem o espaço necessário. As conexões de nossa época
não estimulam a intimidade, e as consequências disso apontam para uma
sociedade cada vez mais insegura e voltada a soluções superficiais.
Dedicado à escuta do sofrimento individual, o psicanalista e psiquiatra Marcelo Veras, autor do livro Selfie, Logo Existo
(Corrupio) e membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Escola
Brasileira de Psicanálise, conversou com a BBC News Brasil sobre nosso
mal-estar atual.
BBC News Brasil - Qual a visão de nossa sociedade sobre saúde mental?
Marcelo Veras - De
um certo modo, acredito que as pessoas estejam cada vez mais
preocupadas com o bem-estar e a saúde mental, mas isso ocorre
precisamente por uma percepção de sua perda. Houve um profundo
remanejamento de conceitos clássicos como narcisismo e intimidade.
A
hiperexposição das redes (sociais) nos distancia muito da realidade do
que somos: mostramos apenas o melhor de nós mesmos, em uma exigência de
felicidade permanente que deixa muito pouco espaço para o sofrimento
subjetivo. No século 21, estamos permanentemente sob os olhares de
câmeras que implodiram o conceito de intimidade. Isso gera uma sociedade
mais insegura narcisicamente e também com a falsa ilusão de que o olhar
do outro é necessário para garantir sua existência.
Surgem então
uma série de terapias e práticas para adequar o sujeito moderno ao seu
ideal de aparência, e cala-se profundamente as raízes, sempre complexas,
do sofrimento individual que não fica bem na foto.
Temos nessa
esteira a disseminação de coachings, programas de lifestyle, estética,
além, evidentemente, do recurso à medicação. Preocupa-me quando a
Organização Mundial de Saúde (OMS) coloca a depressão como a doença do
século. O modo como foi posto pode gerar uma elevação a níveis ainda
maiores de antidepressivos e calmantes pela população.
Prefiro
pensar como Freud que estamos fazendo face a uma epidemia de mal-estar
na civilização, replicado por todos os cantos do planeta pelas mídias
instantâneas.
Hoje em dia, não sofremos apenas pela morte do
filho do vizinho, sofremos pelas perdas que ocorrem em qualquer lugar do
mundo, gerando uma espécie de empatia global que nos lança sobre os
ombros a sensação de que temos que salvar o mundo a qualquer preço.
BBC
News Brasil - Os modos de consumo e de relacionamento contemporâneos
têm alguma associação com o adoecimento psíquico da população, uma vez
que as taxas de depressão e ansiedade são crescentes?
Veras - Sem dúvida. Consumimos objetos assim como consumimos relações.
Nunca
estamos satisfeitos e precisamos de um iPhone mais moderno, de um novo
carro. Um fator que observo nas relações feitas através das redes
sociais, e que era novo para mim, é a expressão "vácuo".
As
pessoas começam a se relacionar pelos aplicativos, começam a se entregar
afetiva e também sexualmente, já que muitas vezes trocam nudes, e, de
repente, um dos dois desaparece na rede e deixa o outro no vácuo. Não há
término, desculpa, nada: um dos dois apenas deleta o outro e
desaparece.
Isso gera uma insegurança narcísica muito grande. Em
mídias como Instagram e Facebook, igualmente nos tornamos reféns de
"likes" de pessoas que nos são totalmente desconhecidas, diferente de
buscar apoio e mesmo de se mostrar amável apenas para um grupo de
amigos.
Tudo isso leva a um modo de ser que vai além do que
(Zygmunt) Bauman definiu como modernidade líquida. Nela, tínhamos a
ideia de que a libido fluía por diversos objetos; vejo muito mais uma
modernidade descartável, onde é possível "deletar" o outro sem restos.
Um
modo como vejo a psicanálise no mundo atual é precisamente se ocupando
dos restos afetivos, para entender que há um tempo para o luto e a
frustração que não deve ser confundido com depressão. Click no link e leia entrevista no BBC News Brasil.
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