domingo, 6 de agosto de 2023

 


* O almoço dos muares *

 

 

Teorema de Dandelin

O corte de um cone circular reto

por um plano que não passe pelo vértice,

é uma elipse, uma hipérbole ou uma parábola.

Germinal Dandelin (1794-1847)

 

Privilégio dos longevos, transcorridos mais de sessenta anos, os fatos permanecem nítidos na memória. 

Estamos em 1958, Pelotas, RS: Colégio Gonzaga. 

Trata-se de tradicional educandário, fundado em 1895, nos primeiros trinta anos dirigido por jesuítas e, a partir daí, por irmãos lassalistas, dedicado, exclusivamente, ao ensino de meninos.   

Somos quarenta e quatro os alunos concluintes do Curso Científico, leia-se Ensino Médio. A formação é universalista, intensa e levada a sério, mas a rapaziada, durante o ano letivo, a título de despedida, apronta poucas e boas. 

Aos dezessete anos, estou entre os mais jovens da classe ungida por certas regalias. Fumar na sala de aulas é uma delas. Por sermos os “mais velhos e mais adiantados”, temos assegurados os comandos do Grêmio Estudantil e da Banda Marcial e, ainda, participamos da Congregação Mariana, bem como da Academia de Letras. As atividades extracurriculares somadas aos deveres do curso só dão tempo para o cineminha dominical. 

O diretor, semblante esquálido, Irmão Henrique Miguel conhecido por seu apodo, Caveirinha, é afamado por receber mães de alunos a portas fechadas. Disfarce, adotado por ele, maldizem línguas ferinas, para acobertar amores com certa senhora da sociedade, frequente em suas visitas. Verdade ou não, tempos após, abandona a batina e vai viver na paz de um amor profano. 

Por outro lado, Irmão Feliciano, funcionalmente irmão-prefeito, feições germânicas, sorriso largo, é o responsável pela aplicação de sanções disciplinares, da simples advertência verbal até a expulsão do colégio. 

Religião, ministrada por Padre Fogaça, gente fina, bom de prosas, respeitados os limites impostos pelos usos e costumes. Certa feita, atropelamos as regras estatuídas. Ao chegar o padre à classe, depara-se com uma “camisinha-de-vênus”, semicheia com água, pendurada ao quadro-negro, intitulada “A gota”, como sendo o assunto do dia: tremendo escândalo, explícita ameaça quanto a se viéssemos aprontar novamente. 

Quem foi avisado, avisado está, diz o ditado; prossigamos, pois. 

Outro alvo de nossas malvadezas tem sido Irmão Gabino Geraldo, espanhol, professor de inglês e filosofia. Dito mestre nutre ojeriza ao som de sapatos arrastados no chão. Basta voltar-se ao quadro-negro, para nós, acintosamente, esfregarmos os calçados no assoalho de madeira. Isso quando, em acréscimo, não colocamos cabeças de fósforo sob um dos pés das cadeiras, batendo a seguir com o calcanhar para provocar inesperados e abruptos estalidos. Até aí, tudo bem. Complacente, apesar de irritado, Irmão Gabino sempre esboça compreensão ante nossa imaturidade. 

Irmão Chiquinho, professor de química, também tem sido alvo de nossas malvadezas. Outro dia, em aula prática no laboratório, procedeu a uma reação a resultar em um sal verde. Ante o anúncio, rápidos como rastilho de pólvora, cochichos entre os presentes. 

Finda a experiência, Othelo Fabião, companheiro extrovertido, perfeito animador de auditório, alerta ao mestre quanto a ter ocorrido algum engano. 

Irmão - exclama Othelo -, o sal não é verde, é vermelho!

Seu Othelo, deixe de brincadeiras, contesta o mestre.

Irmão, irmão, – apela outro – Othelo tem razão, estou vendo vermelho e não verde!

Em algazarra, palmas compassadas, a classe uníssona:

Vermelho! Vermelho! Vermelho! Vermelho! Vermelho! Vermelho! 

Desalentado, Irmão Chiquinho encarece silêncio.

         Meninos! – disse – refaçamos a experiência para tirar a prova. 

Evidente, o resultado foi idêntico ao anterior, mas a classe:

Vermelho! Vermelho! Vermelho! Vermelho! Vermelho! Vermelho! 

         A tal altura, a paciência de Irmão Chiquinho esgota-se.

         Silêncio! Silêncio! Brada altissonante.

A seguir, voz baixa e com extrema contenção, setencia:

         Agora vou indagar ao aluno nota 10, Lórgio Acevedo, primeiríssimo lugar sempre, qual a cor do sal. Senhor Lórgio, por favor, informe a seus colegas qual a verdadeira cor do resultado da experiência. 

         Lórgio, introvertido e tímido por natureza, em tom quase inaudível:

         Irmão, o senhor desculpe, mas a cor que estou vendo é ver ... -  e vacila em instante de suspense.

Moto contínuo, Irmão Chiquinho indaga:

Ver o quê, senhor Lórgio? Ver o quê?

Vermelho, irmão! Completa Lórgio, sucedido pela turma:

Vermelho! Vermelho! Vermelho! Vermelho! Vermelho! Vermelho! 

Foi a gota d’água. Furioso, Irmão Chiquinho abandona o laboratório, afoito, atropelado pela própria batina, rumo à sala do irmão-prefeito. Poucos minutos transcorridos, retorna acompanhado pelo responsável disciplinar. São recebidos pela classe, em pé e silêncio. 

Novamente, os senhores dando problemas – inicia irmão-prefeito, mas vamos colocar tudo em pratos limpos. Irei chamá-los, para confirmarem a cor certa. 

Conclama um a um, por ordem alfabética.

Verde! Verde! Verde! – foram todas as respostas. 

Finda a inquirição, prossegue:

Muito bem! Saibam os senhores: de cada qual serão descontados cinco pontos da nota auferida na próxima sabatina de química. Estudem, hein? Se alguém não alcançar a nota cinco, ficará devendo a diferença para ser descontada na subsequente sabatina. Alguma dúvida? 

Silêncio de finados. 

Não restando dúvidas  – continua irmão-prefeito –, a pena disciplinar se completará com a suspensão coletiva às aulas, por dois dias, a partir de agora. Estão todos dispensados. 

Felicíssimos, rumamos à praça central da cidade para comemorar a “licença-prêmio” alcançada. 

Temos também outro mestre, leigo, professor de matemática, baixa estatura para os padrões sulistas, guarda-pó impecavelmente branco, voz gravíssima, porte senhorial e impositivo. Intransigente, senhor de didática admirável. Todos temem seu rigor na correção das provas. Como “todo o angu tem seu dia de caroço”, a quase fim do ano letivo, a turma improvisa algo para o professor, Raphael Alves Caldellas chama-se. 

Alguém trouxera vários feixes de capim. Durante o recreio, os mesmos foram ajeitados sobre a mesa do mestre, instalada sobre estrado, próximo ao quadro-negro. 

Soa o sino, final do recreio, caras de anjos apostos em nossos respectivos lugares.  Instantes a seguir, professor Caldellas adentra a sala. 

Bom dia! Protestamos, levantando-nos como manda a praxe.

Bom dia! Responde o mestre com seu vozeirão, enquanto se dirige a seu posto de trabalho. 

De prontidão, a turma aguarda autorização para sentar.

Ao ver o capim sobre a mesa, o professor volta-se à classe: 

 Peço que me desculpem. Não sabia que os senhores estavam almoçando. Como não gostaria de perturbá-los, ausentar-me-ei do recinto. Comunico, ainda, que o Teorema de Dandelin, previsto para hoje, não será dissecado, mesmo assim será objeto de teste escrito na próxima aula. Tenham todos um bom dia e um bom almoço! 

A seguir, retira-se deixando-nos em pé, a ver navios. 

O clima coletivo de ansiosa expectativa é interrompido por Othelo Fabião – sempre ele - ao ler com entonação teatral o cabeludíssimo enunciado do Teorema de Dandelin. 

Enormes pontos de interrogação sobrevoam nossas desmioladas cabeças.

E agora? E agora? E agora? Desnorteados, perguntamos uns aos outros.

Como vamos estudar sozinhos?

Como iremos enfrentar a prova anunciada? 

Estávamos todos, tristonhos tigres em tais tensões, meio a desconhecida selva, sem norte e sem bússola quando, inopinadamente, surge um caçador armado até os dentes, ávido em descarregar a farta munição.  Quadro perfeito para uma mortandade coletiva. 

À nossa frente, de arma em punho, Irmão Feliciano, carrasco responsável pelas normas disciplinares. 

Agora sim! Estamos lenhados! - Pensamento coletivo. 

Àquela altura, irmão-prefeito já estava a par do acontecido, concedera, ao mestre afrontado, seu beneplácito quanto à atitude tomada. Os alunos se virassem; haveria prova de matemática na aula seguinte e estamos conversados. Tudo isso, porém, é pouco; resta coroar o ato disciplinador. 

Foi quando, todos ainda em pé, silêncio tumular, ouvem a sentença. 

 Quer dizer, então, os senhores agora se deram para engraçadinhos. Não desejo saber quem trouxe o capim para a classe, bem sei que os senhores estão previamente combinados ao silêncio coletivo; também não aceito nem quero explicações.

Fico satisfeito, pois trazido o almoço, vocês aqui poderão ficar, alimentados, para cumprir a tarefa que irei determinar.

Cada um deverá redigir uma redação, manuscrita, no mínimo com 40 linhas, legível, hein? Aqui sobre a mesa há papel almaço suficiente. Agora, queiram sentar-se. Alguma dúvida? 

Timidamente, Othelo ergue o braço. 

Seu Othelo, qual sua dúvida?

Nada, irmão, mas não recordo se o senhor anunciou o tema da redação. Se o disse, peço desculpar por não haver prestado atenção. 

É verdade, seu Othelo – confirmou irmão-prefeito, em tom maliciosamente vingativo -, ia esquecendo. A redação terá por tema – escreveu em letras garrafais no quadro negro – O ALMOÇO DOS MUARES. 

Sem mais palavras e prometendo retornar às 14:00 horas para recolher os trabalhos, ausenta-se, nada valendo aclamações e murmúrios partidos dos quatro cantos da sala. 

A brincadeira custou muito caro, além da queda, coice.

Dos 44 alunos, apenas onze concluíram o curso com direito à solenidade de formatura nos primeiros dias de dezembro. Entre os demais, uns não alcançaram a média geral mínima, outros foram reprovados em três matérias; outros ainda ficaram na dependência dos exames de “segunda época” - em uma ou duas disciplinas -, agendados para janeiro. 

Eu, felizmente, não só estive entre os onze, bem como não encontrei maior dificuldade para a redação. Não destaquei o tom jocoso nem a leitura do acontecido sob o aspecto punitivo, atendo-me aos fatos. Como é de supor-se, hoje, mais de sessenta anos vividos, a incumbência ficou mais fácil e mais divertida.

Agora, a relembrar o episódio, dou razão a Conselheiro Aires do preclaro Machado de Assis, a verdade pode ser inverossímil e muitas vezes o é. 

Abraços de sempre.



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