terça-feira, 8 de agosto de 2023

Segunda é dia de crônica

A prosopopeia dos olhos teus

Ver é um tipo de alfabeto, sem letras, afinal, os olhos descrevem o que miram, falam o que pensam, escondem o que é preciso, sem deixar de contar o necessário. Ver é trama, porque o olhar debulha e constrói enredos, com mais razões- ou até sem- do que supõe nossa vã filosofia. Enxergar é uma artimanha evolutiva da espécie, através da qual o universo conspira contra o vazio, a solidão, o isolamento, que permeia o humano e acena com a extinção. Quando o destino caminha para estabelecer o mistério da posse e fazer o amor ajoelhar-se, é usando o golpe baixo da imagem que ele nos dá a rasteira indefensável.
Afinal, que humano, demasiadamente humano, é capaz de resistir quando vê a saia dela dançando sua dança de revelação, quando o vestido de flor e inocência anuncia toda germinação, desejo, perenidade, que ali se esconde? Afinal, que humana, demasiadamente humana, não treme quando vê que a luz do olhar do homem se embaraçou na luz dos olhos dela, e ambas coreografam uma batalha de acasalamento? E ela se entrega. Como quem esbugalha a vida inteira para ele!
Olhar o outro é tomá-lo dentro de si e iluminar-se. E iluminá-lo. Fazendo o dever de anfitrião de acender velas para clarear as veredas do coração- esse grande sertão- onde haja uma fresta escura; ordenhando os temores para secar o leite que alimenta as fragilidades, permitindo que o amor explique, enfim, o motivo de todas as coisas: os meridianos, o teorema de Fermat, o dedal, a luz dos candeeiros.
Não se enganem. Olhos tem postura. E vazantes. Nossos dilúvios vazam por eles. Olhos são inventário. Carregam o pai que já morreu, os conselhos bons que deu; os filhos, os conselhos que não sabemos dar. Carregam aquele amor que aconteceu.
Talvez, tenha sido a incompletude que alucina nossa alma. Ou apenas fosse impossível não se apaixonar por ela, aquela espera de mar indefeso em seu colo. Perguntou-se porque os donos dos milagres lhe ofertavam o leite e o mel, logo a ele que trazia as mãos calejadas e os avessos de febres. Mas quando ela arqueou os braços sob a cabeça, e ele a viu como um chamado de prece silenciosa, soube que o fio da existência estava, novamente, sendo trançado.
Talvez, a vida seja só aquele instante em que ela nos espia e seus olhos de prenhez nos concebe. E a gente fica se achando a última prosopopeia do pedaço.

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