A história de Tara Westover poderia ser um conto de outra época. Mas,
diferente disso, é uma narrativa real que envolve uma vida familiar conturbada,
preparativos para "o fim da civilização" e uma corrida pela educação
que lhe rendeu o título de doutora aos 27 anos de idade, na Universidade de
Cambridge - uma das mais prestigiadas do mundo -, sem ter tido qualquer educação
formal na infância ou feito o ensino médio.
Tara cresceu em Idaho, nos Estados Unidos, em uma família de
sobrevivencialistas - como são chamados grupos ou indivíduos que se preparam
para emergências em caso de possíveis rupturas na ordem política e social. Sua
família via escolas como parte de um exercício de lavagem cerebral do governo a
ser evitado a todo o custo e o resultado é que ela cresceu sem nunca ter pisado
em uma escola.
Seu pai, obsessivamente independente, estocava armas e suprimentos,
pronto para o fim da civilização e para se proteger de qualquer tentativa do
Estado de intervir em suas vidas. E essa lógica valia até mesmo em casos de
emergência, como quando, por exemplo, a família se feriu em um acidente grave
de carro, mas evitou hospitais por enxergar os médicos como agentes de um estado
maligno.
Também era um modo de vida profundamente controlador.
A família fazia uma interpretação fundamentalista do Mormonismo -
movimento religioso restauracionista iniciado no século 19 nos EUA - e
estabelecia regras sobre aspectos da vida de Tara, como o que poderia vestir,
seus hobbies e seus contatos com o mundo exterior.
"Achava
que os outros fossem alienados"
Era uma vida dura, violenta e autossuficiente, como na série de TV
americana "Little House on the Prairie" (pequena casa na pradaria).
Tara se lembra que, com medo de incursões de agentes federais, seu pai
comprou armas poderosas o bastante para derrubar um helicóptero.
O estilo de vida que levavam significou, para ela, uma infância montando
cavalos na montanha e trabalhando em uma sucata, mas não indo à escola.
Ela diz que o argumento familiar em defesa da educação doméstica era, na
verdade, um disfarce para nenhuma escolarização.
Na época, não parecia estranho que não fossem à escola como outras
crianças locais, diz ela.
"Eu achava que eles estavam errados e nós estávamos certos. Eu
pensava que eles eram espiritualmente e moralmente inferiores porque iam (à
escola), eu realmente pensava", diz Tara, em Cambridge, onde vive agora.
"Eu achava
que eles estivessem sendo alienados e eu não."
Tara, agora com
31 anos, escreveu um relato sobre sua infância, chamado Educated (Educada, em
tradução literal), que está sendo publicada neste mês.
Em grande parte se trata de uma autoeducação, porque a primeira vez que
teve contato com aulas formais foi quando começou a faculdade, aos 17 anos.
Ela havia aprendido a ler e escrever com sua mãe e seu irmão, mas nunca
tinha aprendido nada sobre história, geografia, literatura ou o resto do mundo.
"Ensinar
a si mesmo"
O acesso aos livros era limitado a alguns títulos que se enquadravam na
visão de mundo fundamentalista da família, e ela também trabalhou desde cedo. Mas
tinha sido criada com uma crença feroz na capacidade de qualquer um aprender o
que quer que fosse desde que se concentrasse naquilo. "Meus pais me
diriam: 'Você pode ensinar qualquer coisa a si mesmo melhor do que outra pessoa
o faria'. Esse era o espírito da minha família", diz ela.
Buscando uma forma de sair de uma vida familiar restrita e
emocionalmente claustrofóbica, ela encontrou uma universidade que a admitiria
se passasse em um teste.
Foi então que
comprou em segredo os livros didáticos de que precisava e estudou
metodicamente, noite após noite, até obter as notas necessárias. Mas quando
chegou à sala de aula em 2003, aos 17 anos, ficou em um "estado de temor
perpétuo".
"Eu era como um bicho da floresta. Estava em pânico, aterrorizada o
tempo todo. Achei que me pediriam para fazer algo e eu não saberia o que
era."
"Tudo sobre a sala de aula era aterrorizante, porque eu nunca tinha
estado em uma delas antes."
'Não é
uma esteira rolante'
Havia enormes lacunas em seu conhecimento. Ela ficou chocada ao
aprender, por exemplo, sobre o Holocausto pela primeira vez em uma aula de
história. Sobre escravidão, seu único conhecimento prévio havia saído de um
livro, no qual, diz ela, esse regime era apresentado como uma experiência
benevolente e mais difícil para os proprietários de escravos.
Depois de um início desastroso, ela manteve a mente focada nos estudos e
provou ser uma aluna altamente capaz. Tanto que teve a chance de passar um
período em Harvard e, depois, ir estudar no exterior, na Universidade de
Cambridge.
Ela conseguiu uma bolsa de estudos na universidade, com financiamento da
Fundação Gates, e fez doutorado. Virou a doutora Westover aos 27 anos, em 2014,
sem jamais ter concluído o ensino médio.
O assunto de sua tese foi uma comunidade utópica criada no século 19. A
trajetória de Tara lhe deu uma visão pouco ortodoxa sobre como a educação
funciona.
Ela diz que sua
própria educação foi em boa parte uma alternativa extrema, mas tem dúvidas
sobre a experiência convencional. "A maior preocupação é que isso parece
um processo tão passivo e estéril. Uma esteira rolante onde você fica e de onde
sai educado", diz.
"Eu acho que muitas pessoas cresceram com a ideia de que não podem
aprender as coisas por conta própria. Elas acham que precisam de uma
instituição para lhes suprir conhecimento e ensinar a como fazer as coisas. Eu
não poderia discordar mais", diz ela.
Distanciamento
Tara diz que se tivesse filhos não os enviaria à escola quando tivessem
cinco anos. "Eles poderiam pensar que educação é se sentar quieto." Ela
se distanciou de seus pais e de sua religião - e diz que romper com suas
antigas crenças tem sido uma experiência traumática. Mas ela não se converteu
acriticamente à nova vida e à experiência na universidade.
Tara diz, por exemplo, que há menos tolerância a diferentes opiniões
dentro dos círculos acadêmicos liberais da classe média do que havia entre os
fundamentalistas estritos de sua infância. Ela afirma que rejeitou as políticas
antigovernamentais extremas, mas que, na perspectiva da Idaho rural onde
cresceu, isso fazia algum sentido.
Para comunidades rurais tão isoladas, diz, o governo federal parecia uma
"força alienígena e extremamente ineficaz". Nos relatos sobre sua
criação, é possível ouvir algumas das ideias que alimentaram a campanha
eleitoral do presidente Donald Trump.
Memórias
Tara diz que suas memórias de infância, incluindo suas descrições sobre
a violência de seu irmão, não têm um "final feliz como nos cinemas". "Você
pode sentir falta de alguém todos os dias e ainda se alegrar de não ter de
vê-los", diz. As coisas mais difíceis de escrever não foram sobre as
brigas com a família e as restrições que enfrentava. "O mais difícil foi
escrever sobre as coisas boas, as coisas que eu perdi. O som da risada da minha
mãe, o quanto a montanha era bonita."
"É como ir ao casamento de alguém por quem você ainda está
apaixonado." (BBCBrasil.)
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