A compatibilidade sanguínea é um fator chave para o sucesso de
procedimentos médicos complexos. Data de 1667 a primeira transfusão
sanguínea da história: o médico francês Jean-Baptiste Denys, que atendia
figuras ilustres como o rei Luís XIV, transferiu sangue de ovelha para
um menino de 15 anos. Surpreendentemente, o menino não morreu: a
quantidade foi pequena e o corpo dele conseguiu resistir aos problemas
causados pelo sangue do outro mamífero.
Pena que só deu certo com esse menino, mesmo: óbitos
decorrentes de transfusões mal sucedidas eram comuns. Em 1901, o
imunologista austríaco Karl Landsteiner descreveu um dos fatores
responsáveis por tantos fracassos: existem três tipos diferentes de
sangue (A, B e O), e eles não podem ser misturados. Mais tarde, outros
pesquisadores atestaram que existia mais um tipo, o AB, e aí nascia
oficialmente o sistema ABO.
Beleza, mas por que estamos voltando a aula de biologia do ensino médio? Bem, em um artigo publicado na revista Nature Microbiology,
cientistas da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá,
conseguiram realizar um feito inédito: converter, utilizando enzimas
naturais do intestino humano, o sangue tipo A em tipo O, que é doador
universal.
Como o tipo A é o segundo mais comum do planeta (corresponde a cerca
de 30% da população mundial), torná-lo compatível a todos os outros
tipos sanguíneos poderia ser um alívio gigante a hemocentros e salas de
emergência pelo mundo, que sofrem diariamente com a falta de estoque de
bolsas com sangue, principalmente do tipo O.
Você pode estar se perguntando: como eles conseguiram fazer isso?
Para entender como essa façanha foi possível, vamos voltar aos conceitos
do sistema ABO.
Revertendo sangues
O pulo do gato das transfusões sanguíneas está nos antígenos e
anticorpos característicos de cada sangue. Vamos explicar melhor. Lembra
das hemácias – também conhecidas como glóbulos vermelhos? Elas são as
células do sangue responsáveis por carregar o oxigênio para as várias
partes do corpo. Dependendo do tipo sanguíneo, essas células são
envoltas por açúcares (glicoproteínas e carboidratos como a galactose)
específicos.
Se você injeta o sangue de um tipo em uma pessoa cujo sangue é de outro
tipo, esses açúcares estranhos vão acionar um alarme no sistema
imunológico da pessoa que recebeu a doação. As células de defesa dela
vão atacar o sangue novo. E aí… adeus vida cruel.
O
sangue tipo O é o doador universal justamente porque suas hemácias
estão livres desses açúcares – ou seja, não estimulam células de defesa
de nenhum tipo sanguíneo. Se todas os tipos possuíssem hemácias como as
do tipo O, as transfusões seriam bem mais simples. Acontece que o
processo atual para tirar os açúcares das hemácias vindas de outros
tipos sanguíneos (isto é, neutralizá-las) tem custos elevadíssimos e nem
sempre eram eficientes. Até agora.
Calhou que a resposta estava o tempo inteiro na nossa microbiota
intestinal. Os pesquisadores notaram semelhanças entre alguns açúcares
presentes no sistema digestório e os encontrados em células de sangue
tipo A. Com base nisso, resolveram testar se as enzimas das bactérias do
intestino que digerem esses açúcares conseguiriam, também, destruir os
açúcares das hemácias tipo A.
Nos testes, duas das enzimas resultantes do processo de digestão natural (reproduzido in vitro)
conseguiram quebrar eficientemente os açúcares das células do sangue
tipo A, desde que trabalhassem simultaneamente. A técnica, segundo os
pesquisadores, poupa tempo e recursos. E os resultados se mostraram
promissores.
Esse foi o primeiro estudo científico que encontrou essa correlação e
conseguiu “converter” um tipo sanguíneo. Os cientistas afirmam que mais
pesquisas precisam ser desenvolvidas para aprimorar esse processo de
mudança do sangue – e, quem sabe, torná-lo o clinicamente viável para
milhões de pessoas que precisam. (Super Interessante)
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