terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Como Brasil entrou em lista de 'alto risco' de volta da pólio


Brasil, Bolívia, Equador, Guatemala, Haiti, Paraguai, Suriname e Venezuela são os países das Américas com alto risco de volta da poliomielite, segundo informes divulgados pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) ao longo do segundo semestre de 2021.

De acordo com a entidade, a baixa taxa de vacinação nesses locais representa um perigo para todo o continente, que não registra um único caso da doença há exatos 30 anos.

"Esses países, que representam 32% da população com menos de um ano de idade das Américas, têm sustentado uma baixa cobertura de vacinação e sistemas de vigilância fracos, o que representa uma ameaça de emergência do vírus e a subsequente circulação dele", alerta a Opas.

Mas como o Brasil, que teve um dos programas de imunização contra a pólio mais bem-sucedidos da região, foi parar nessa lista? E o que está sendo feito para reverter esse panorama?

De acordo com especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a pandemia de covid-19, a falta de campanhas de comunicação, uma desconfiança generalizada nas autoridades e a sensação de que essa doença não preocupa mais são alguns dos fatores que ajudam a explicar a atual situação.

Uma doença séria e incapacitante

A infectologista Raquel Stucchi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entende que a vacinação contra a pólio é vítima de seu próprio sucesso.

"As vacinas são tão boas que essa doença desapareceu do país. Atualmente, meus alunos só veem casos de pólio nos livros", conta.

O último paciente com poliomielite no Brasil foi identificado em 1989. Em 1994, nosso país recebeu da Opas o certificado de eliminação da transmissão do vírus causador dessa enfermidade.

A médica, que também integra a Sociedade Brasileira de Infectologia, explica que esse vírus é transmitido de pessoa para pessoa ou através da contaminação das redes de esgoto e água.

O peruano Luis Fermín Tenorio Cortez (ao centro) foi a última criança vítima do poliovírus selvagem em todo o continente americano (Armando Waak/OPS)

"O agente infeccioso, conhecido como poliovírus, fica no intestino e é eliminado pelas fezes. A partir daí, pode contaminar outras pessoas", ensina.

Na maioria das vezes, a infecção não tem grandes repercussões na saúde. Mas há uma parcela de acometidos, especialmente crianças com menos de cinco anos, que desenvolvem formas bem graves.

Nesses casos, o vírus afeta o sistema nervoso e pode causar uma espécie de fraqueza muscular — daí vem o termo "paralisia infantil", um dos nomes populares da moléstia.

"Alguns pacientes sofrem uma paralisia das pernas e não conseguem mais andar. Em quadros ainda mais sérios, os músculos do tórax são afetados e se perde a capacidade de respirar", acrescenta Stucchi.

Durante boa parte do século 20, a única maneira de manter esses indivíduos vivos eram os "pulmões de aço", uma máquina grande que gerava uma pressão no peito para garantir a entrada do oxigênio e a saída do gás carbônico pelas vias aéreas.

Os 'pulmões de aço' permitiam que os pacientes com pólio continuassem a respirar (Getty Images)

Conhecida há milhares de anos, a poliomielite foi um enorme problema de saúde pública nos séculos 19 e 20, com surtos e epidemias registrados em várias partes do mundo.

A história começou a mudar a partir da década de 1950 e 1960, quando foram desenvolvidas as duas vacinas usadas até hoje.

A primeira, injetável e feita a partir do vírus inativado, foi criada pelo médico americano Jonas Salk (1914-1995). A segunda, fruto do trabalho do pesquisador polonês Albert Sabin (1906-1993), é dada em gotinhas e traz o vírus atenuado em sua formulação.

Desde que os esforços para a erradicação da poliomielite avançaram por todos os continentes, os casos da doença caíram 99%.

Para ter ideia, em 1988 foram registrados 350 mil diagnósticos de pólio em 125 países. Em 2021, o vírus selvagem permanece endêmico em apenas dois lugares: Paquistão e Afeganistão, que registraram 5 casos nos últimos 12 meses.

Também é preciso mencionar aqui os casos de pólio provocados pelo vírus atenuado da vacina Sabin, dada em gotinhas: eles são raríssimos e foram observados especialmente na África, em pessoas com a imunidade comprometida e em locais com pouco acesso a tratamento de água e esgoto.

Que fique claro: ter uma vacina oral contra a pólio facilitou muito o esforço mundial de erradicação e esse produto foi decisivo para controlar a doença no cenário internacional. Afinal, as gotinhas são bem fáceis de transportar e aplicar, além de não exigirem um treinamento muito complicado.

Mais recentemente, porém, com a redução de 99% dos casos da doença provocada pelo vírus selvagem, muitos países passaram a oferecer, especialmente nas primeiras doses, apenas o imunizante injetável (Salk), feito com o vírus inativado. Nesse caso, o risco de ter pólio por derivado vacinal não existe.

O nosso país, inclusive, adota essa estratégia, como você confere a seguir.

Brasil, do sucesso à preocupação

Entre 1968 e 1989, o Brasil contabilizou mais de 26 mil casos de poliomielite, de acordo com os dados do Ministério da Saúde.

Embora existissem projetos municipais e estaduais para vacinação das crianças contra esse vírus, a primeira campanha nacional de imunização contra a poliomielite foi lançada oficialmente em 1980, em consonância com um esforço mundial para a erradicação dessa doença, que está em curso até hoje.

Nosso país, inclusive, foi pioneiro em vários aspectos e lançou algumas estratégias que fizeram muita diferença no engajamento da população, avaliam os especialistas.

Os dois exemplos mais bem sucedidos foram a criação dos famosos "dias D" da campanha, que contavam com ampla divulgação nos meios de comunicação, e a criação de personagens com forte apelo popular, como foi o caso do Zé Gotinha.

No Brasil, o personagem Zé Gotinha surgiu em 1986 como parte de uma campanha de vacinação contra a pólio

O último caso de poliomielite no país foi observado na cidade de Sousa, na Paraíba, em 1989. A doença é considerada oficialmente eliminada do território nacional há 27 anos, desde 1994.

A vacina contra a poliomielite segue indicada para todas as crianças brasileiras num esquema de cinco doses. As três primeiras são feitas com o imunizante injetável e devem ser aplicadas aos dois, aos quatro e aos seis meses de vida. Depois, os dois reforços (geralmente feitos com as gotinhas) são dados entre os 15 e os 18 meses e aos 5 anos de idade.

Nos últimos anos, porém, a cobertura vacinal tem deixado a desejar. Segundo os dados do próprio Ministério da Saúde, a taxa de imunizados contra a pólio caiu consideravelmente de 2015 para cá.

Há seis anos, 98,2% do público-alvo recebeu as doses. Em 2016, essa taxa caiu para 84,4% e se manteve nesse patamar até 2019.

Em 2020, uma nova queda importante foi registrada: de acordo com os dados preliminares, que ainda podem passar por alguma revisão técnica, apenas 75,9% receberam as doses contra o vírus causador da paralisia infantil.

Em outras palavras, uma em cada quatro crianças brasileiras não está suficientemente resguardada contra a poliomielite.

"Se considerarmos o número de nascidos vivos no país, estamos falando de praticamente um milhão de indivíduos desprotegidos", calcula o pediatra Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

É justamente esse contingente de não-vacinados que alarma as autoridades e colocou o Brasil na lista dos países com "alto risco" para a reintrodução da pólio nas Américas.

"Toda essa situação nos deixa bastante preocupados. Estamos falando de uma doença que paralisa crianças", chama a atenção a infectologista e pediatra Luiza Helena Falleiros Arlant, coordenadora da Câmara Técnica de Imunizações (Pólio) do Ministério da Saúde.

"E o principal pilar para não deixar esse vírus chegar de novo ao nosso país é vacinar toda a população-alvo. Porque daí, mesmo se acontecer de entrar alguém infectado com pólio pelos aeroportos, portos e fronteiras terrestres, não haveria risco de transmissão interna, já que a maioria da população estaria protegida", complementa a especialista, que também coordena o Departamento de Saúde da Criança da Faculdade de Medicina da Universidade Metropolitana de Santos, no litoral paulista.

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