Três entre cada dez brasileiros têm
limitação para ler, interpretar textos, identificar ironia e fazer
operações matemáticas em situações da vida cotidiana - e, por isso, são
considerados analfabetos funcionais.
Eles hoje representam
praticamente 30% da população entre 15 e 64 anos, mas o grupo já foi bem
maior: em 2001, chegou a 39%, de acordo o Indicador de Analfabetismo
Funcional (Inaf).
O Inaf acompanha os níveis de analfabetismo no
Brasil em uma série histórica desde 2001, mas, pela primeira vez neste
ano, trouxe informações relacionadas ao contexto digital. Os dados
relacionados ao uso de redes sociais foram divulgados nesta
segunda-feira com exclusividade para a BBC News Brasil.
O instituto classifica os níveis de alfabetismo em cinco faixas:
analfabeto (8%) e rudimentar (22%) (que formam o grupo dos analfabetos
funcionais); e elementar (34%), intermediário (25%) e proficiente (12%)
(que ficam na classificação de alfabetizados).
Para a pesquisa
foram entrevistadas 2.002 pessoas entre 15 e 64 anos de idade,
residentes em zonas urbanas e rurais de todas as regiões do país.
O
grupo de analfabetos funcionais reúne os analfabetos absolutos, que
assinam o nome com dificuldade, mas conseguem eventualmente ver preços
de produtos, conferir troco, ligar para um número de telefone e
identificar um ônibus pelo nome; e os rudimentares, que só leem o
suficiente para localizar informações explícitas em um texto curto,
sabem somar dezenas, mas não conseguem identificar qual operação
matemática é necessária para resolver um problema, por exemplo.
De
acordo com a pesquisa, entretanto, mesmo com suas dificuldades, os
analfabetos funcionais são usuários frequentes das redes sociais. Entre
eles, 86% usam WhatsApp, 72% são adeptos do Facebook e 31% têm conta no
Instagram.
Assim, quando se comparar o índice de uso entre os
dois grupos - alfabetizados e não-alfabetizados - a diferença não é tão
grande. Entre os considerados proficientes, por exemplo, 89% usam o
Facebook.
A falta de repertório dos analfabetos funcionais,
contudo, faz com que o acesso a essas plataformas seja mais limitado.
"Essas pessoas não vão tirar proveito das redes sociais para conseguir
informações, garantir direitos, porque não conseguem discernir
conteúdos. Teriam a mesma limitação com um jornal escrito, por exemplo; a
diferença é que este elas não vão acessar", afirma a pesquisadora Ana
Lima, responsável pela elaboração do indicador.
Os dados da pesquisa corroboram o que a especialista
diz: entre os analfabetos funcionais, 12% enviam mensagens escritas e
escrevem comentários em publicações do Facebook, 14% leem mensagens
escritas e 13% curtem publicações. Para efeito de comparação, entre os
que têm nível de alfabetização proficiente, 44% enviam mensagens
escritas, 43% escrevem comentários em publicações, 47% leem mensagens
escritas e curtem publicações.
"Quem tem mais domínio do
alfabetismo usa mais o Facebook, mas o que chama a atenção é a diferença
pequena (de utilização entre analfabetos e não), principalmente se você
pensar na limitação de um analfabeto funcional. O Facebook está cheio
de textos, imagens, exige escrita, por isso revela uma potência desses
suportes digitais como estimulador do avanço do alfabetismo", ela
afirma.
Já no WhatsApp quase não há diferença de uso entre os
grupos divididos por nível de alfabetização. Enquanto 92% dos
analfabetos funcionais enviam mensagens escritas, o índice é de 99%
entre os alfabetizados; 84% dos analfabetos funcionais compartilham
textos que outros usuários enviaram, já 82% dos alfabetizados fazem
isso.
Pollyana Ferrari, jornalista, pesquisadora de mídias
digitais e professora da PUC-SP, diz que o brasileiro aderiu
integralmente ao WhatsApp, até porque é uma plataforma gratuita que
substituiu o SMS, que é cobrado pelas operadoras de telefonia celular.
"Todo
mundo usa o WhatsApp, do médico ao entregador de pizza, do executivo à
faxineira, mas ninguém foi treinado, e cada um usa e propaga da forma
que consegue compreender."
Manipulação e mensagens falsas
Um
dos reflexos do baixo nível de alfabetismo no contexto digital é que
estas pessoas ficam mais vulneráveis à desinformação, especialmente
memes, imagens manipuladas e usadas em contexto falso, segundo Christine
Nyirjesy Bragale, vice-presidente de comunicação do The News Literacy
Project.
"Obviamente elas têm uma capacidade limitada para checar
através de pesquisa e leituras paralelas, e seu acesso a jornalismo
impresso de qualidade é limitado", explica Christine, que está no Brasil
a convite da Embaixada Americana para debater o tema nesta segunda em
evento na sede do movimento Todos pela Educação, em São Paulo.
Para
a especialista norte-americana, o primeiro passo é garantir que as
pessoas, independentemente de seus níveis de leitura, compreendam que a
desinformação pode vir por diferentes canais, incluindo imagens
manipuladas e vídeo e se espalhar rapidamente.
"Só essa consciência já é um começo para combater a desinformação e diminuir a sua propagação."
Pollyana Ferrari acredita que o trabalho de
conscientização só virá com o amadurecimento do uso das redes sociais,
que ainda é recente no Brasil - tem 14 anos -, além de educação. Ela
cita o caso de Portugal, que oferece aulas de letramento em mídias
digitais nas escolas de educação básica desde os anos 90.
"A
pessoa não vai deixar de ver um vídeo e compartilhar, o brasileiro
acredita muito no grupo do WhatsApp da família, seja para o bem ou para o
mal. As pessoas têm direito de ter um celular, pode ter mais risco de
cair em golpes e receber vírus, mas vai aprender usando. Mas não há o
que fazer, a responsabilidade é dos governos, das empresas, de treinar,
formar, o trabalho é coletivo e de 'formiguinha'."
A professora
lembra que, até pela dificuldade de interpretação de texto, as mensagens
falsas se propagam mais por mensagens em áudio. "Muita gente acredita
nas 'fakes news' porque não tem bagagem, não tem senso crítico, quando
há uma escolaridade precária, a pessoa fica muito mais manipulável."
"Somos um país pobre, de baixa escolaridade, a gente saiu da TV aberta,
mas houve um deslocamento para as redes sociais sem nenhuma capacidade
de discernimento. Numa sociedade democrática com baixa escolaridade, a
manipulação de informação é mais fácil de acontecer", explica Pollyana.
Analfabetismo no ensino superior
Os
dados desta edição do Inaf mostram que, entre o grupo de 29% dos
analfabetos funcionais, 4% estão no ensino superior, nível de ensino em
que se pressupõe um aluno plenamente alfabetizado.
A pesquisadora
Ana Lima reforça que a escolaridade é o fator determinante do nível do
analfabetismo, mas, ao mesmo tempo, ela não garante o que é esperado.
"Para mexer no nível de proficiência precisamos de
educação de qualidade. Uma educação que desloque o aluno de um nível
mais coloquial para entender ironia, interpretação de texto, capacidade
de distinguir fato de opinião. Isso é ir além de leitura mecânica, é
saber ler nas entrelinhas", afirma.
A pesquisadora reforça que,
para cursar o ensino superior, é óbvio imaginar que as pessoas deveriam
estar plenamente alfabetizadas para conseguir discutir, fazer análise,
participar e debater. "Sem isso não é possível se formar."
João
Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto, diz que o cenário
é desolador principalmente porque "melhorias não estão no radar." "O
prejuízo é gigantesco, porque compromete a produtividade da economia e
as chances de a educação contribuir para a melhoria de vida das pessoas.
Para as pessoas situadas entre os analfabetos funcionais, a perspectiva
de vida é muito limitada. O Brasil optou pela quantidade, em detrimento
da qualidade." (BBCBrasil)
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