domingo, 30 de julho de 2023

 


* Cortes e Recortes *
 

Cinco horas, sozinho, percorrendo estrada sertaneja – mandacarus como paisagem –, consumidas para rever o filho futebolista. Aos sábados recém-paridos pela noite, armas e bagagens à mão, partia de carro rumo à bela Senhor do Bonfim. À época, o filho nº 9 integrava equipe feirense sub-20, cujo mando de campo era sediado na referida cidade. 

Por companhia nas solitárias idas e vindas, comigo viajava a musicalidade poética de um cantador nordestino da melhor estirpe, Jorge de Altinho. 

“Se o Deus de lá é o Deus daqui, não saio do meu Cariri”, cantava o menestrel. Fosse isso pouco, transbordava-se em poesia ao versar o rio vazio “que de água nem um fio, sem saber se vai chover”.

     Viagens paternais e afetivas aconteciam após o decurso das semanas com leque aberto às atividades no sítio, a manter-me em cuidados com a terra-mãe; terra destinada, um dia, a nos acolher em seu regaço. 

Pano de fundo do viajar sertanejo: recortes da beleza do leito seco de um rio e da exuberância de majestosos mandacarus jacentes, arremetendo à ideia de qualquer um deles – tantos são - haja inspirado a modernista Tarsila do Amaral em sua famosa obra antropofágica Abaporu. 

Inspiração também associada a um sol, o mesmo de fulgurante radiação, avesso à chuva, a inundar de reverberações a interminável trilha preta à minha frente. 

A tais sentimentos recortados, ao viajar sem pressa - saudade do filho a tiracolo -, certo vazio me importunava; de minha mente tudo se evadia, só restava aquele rio “que de água nem um fio, sem saber se vai chover”. 

Ainda bem, após sumir o precioso líquido, fazedor de o rio sentir-se o tal, em seu leito brotam acinzentados seixos, luzidios por viverem a vida a rolar e a refletir como raios laser a ofuscante luz do sol. 

Luz que encandeia as vistas e, decidida, comprime as pálpebras.

Luz que franze o cenho e, sem pedir licença, invade o íntimo. 

A mente me socorre, enchendo com vontade de (d) escrever a exaustão e o vazio sentido; assim, graças aos sentidos, a pena encaro, o olhar paro, apuro o faro. 

Avanço. 

Sinto na língua o sal da terra em seu transe hídrico e ouço a matutina sonoridade dos papa-capins nos quintais de onde vivo. 

Aceso, pois, eis-me aqui, incorrigível sonhador, a anotar existenciais recortes. 

Eu disse recortes.

Cortes seria dizer demais.

Seria anular o nada que poderá fazer falta no futuro. 


Fui curto e grosso.

Um abraço

de aço. 


Graças à homofonia,

um corte com osso,

no domingo, asso

e traço.



Um comentário:

Dina Lopes disse...

Nossa, que texto! Deve ser este, o sentimento dos que deixam a vida passar sem nada fazerem, quando querem acordar não dá mais tempo, ficando apenas com o vazio de um rio que já não o é.