segunda-feira, 22 de maio de 2023

Segunda é dia de CRÔNICA: O grande búfalo

Minha memória, como se diz na Bahia, é fuleira como um acarajé sem pimenta. Esqueço mais que o devido, lembro menos que o necessário, e o que lembro é com a profundidade de um rodapé. Salvo uma ou outra pancada existencial que permanece, não lembro como fiz, onde fiz, quando fiz - e nego se me acusarem ter feito. Não lembro, por exemplo, quando descobri que sabia ler. Morava na roça e estava mais interessado em cavalos, arapucas, do que em decifrar o abecê e a cartilha das mães, que minha mãe – e professora -usava em sua escola rural.

Queria lembrar porque deve ser como inaugurar a própria Via Láctea. Mesmo caprichando no vinho, o máximo que cheguei foi aos gibis que meu irmão me dava e fotonovelas. Lá em casa tinha umas primas que liam fotonovelas e eu lia as fotonovelas das primas imaginando as primas um dia, nas fotonovelas. Gostaria de contar que iniciei descobrindo o que Zaratustra falou, o sertão de Riobaldo, mas vergonhosamente só lembro da Sétimo Céu e Capricho. Isso deve explicar minhas limitações até hoje.

O livro mais remoto que alcanço é Caryl Chessman- 2455 Cela da Morte, o bandido da luz vermelha. Tenso vê-lo escapar da execução, mas fora isso não teve significado nenhum. E Corpo Vivo, de Adonias Filho, ambientado nas selvas do cacau, permeado de boa pontaria, vingança e o poder fatídico e transformador do amor e da mulher. O que descobriria tardiamente, mas não por falta de aviso.

Quando fui morar sozinho aos dez anos, em Salvador, livros me salvaram. O pai de Marcos, colega e vizinho, tinha uma biblioteca e meus anos de desamparo foram curados por ela. Do Espião que Saiu do Frio a Jorge Amado e as ruas da capital que eu descobria ter outra cor. Da oblíqua Capitu a Decameron. E fui de toda Agatha Christie aos livrinhos de faroeste trocados em sebos na Praça da Sé. Um dia, li Reunião, edição com dez livros de poesia de Drummond. E nunca mais nada foi igual.

Mas, talvez, o momento em que descobri que ler podia fazer milagres foi na roça com o jornal A Tarde que meu ocupado pai comprava, às vezes. Uma noite, abriu o jornal sobre a mesa, botou o candeeiro, colou nossas cadeiras, e, eu, de joelhos, fui lendo as notícias - ou rezas de agradecimento. Ele prestando atenção em mim, corrigia. Até hoje lembro que li sobre a primeira criação de grandes bufálos no estado. Ele consertou: é búfalo. Leia sempre para falar certo. Talvez minha vida inteira não passe disso: a tentativa dele não me ver mais errar o grande búfalo.

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