sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Crônica


O Circo

Eu creio que não exista alguém da minha geração que nunca tenha ido a um circo. Era a alegria da meninada. Sair atrás do palhaço da perna-de-pau, respondendo ao refrão: Hoje tem marmelada? Tem sim senhor! Hoje tem goiabada? Tem sim senhor! Arrocha negrada! Ô raia o sol suspende a lua, olha o palhaço no meio da rua... Sim senhor! Infância, alegria plena e inocente. Às vezes, nem tão inocente assim, mas, desprovida de maldade.
O circo, seus animais, artistas, bandas de música. A mulher barbada, a outra que vira bicho, o ousado trapezista, o valente domador, o misterioso mágico e as lindas mulheres rumbeiras, estarão sempre nos sonhos e lembranças das crianças da minha geração.
Depois o circo ficou... diferente. Perdeu o glamour e a magia que encantava a crianças e adultos, e passou a ter outros objetivos. Em Salvador tinha o Circo Voador, onde havia peças de teatro e shows de MPB. O jornalista e produtor artístico, Paulo Norberto, montou um circo em Cabuçu para realizar shows musicais para os veranistas feirenses. O circo de verdade, na sua versão original, perdeu espaço e hoje, muito raramente, algumas imagens suas ainda aparecem nas frias telas dos receptores de TV.
Alguns poucos remanescentes permaneceram numa inútil luta pela sobrevivência, com suas lonas rasgadas simbolizando a sua irreversível decadência. Lembro-me que morava em Itaberaba quando por lá apareceu um circo próximo onde eu morava e, como a cidade não oferecia muitas opções de lazer, inventei de inventar de ir ao circo. Levei todo mundo, inclusive um casal amigo que estava nos visitando. Não foi, realmente, uma boa idéia. Até hoje Madalena de Jesus, quando quer me sacanear, pergunta: De quem foi mesmo a idéia de ir ao circo?
Mas mesmo os circos mambembes, os chamados “tomara que chova”, em priscas eras, tiveram seus momentos de glória. Foi em um destes circos pequenos que assisti ao show de um palhaço que até hoje, quando me lembro, começo a rir. Falava ele sobre a diferença entre o rico e o pobre. O tema é recorrente, mas continua atual. Segundo o palhaço, quando o filho do rico começa a chorar, a madame diz à babá: “Clemilda. Veja por que o neném está chorando. Dê uma chupetinha pra ele.” Já a mulher do pobre, quando o filho chora, a reação é mais ou menos assim: “Cala boca, diabo, tu nasceu pra me atentar...”.
Se o marido está no trabalho, a mulher do rico lhe telefona: “Meu bem. O que você quer comer hoje? Posso fazer uma lasanha, um filé com trufas, ou lagosta com molho de camarão?” Já a mulher do pobre, quando dá meio-dia o marido ainda está trabalhando no roçado, quando ela chega até a porta da tapera e grita: “João! Anda logo hôme! Sinão os minino come tudo!”
Mas quem me fez rir mesmo foi Canelinha, um palhaço que se apresentou num circo lá no sertão, na cidade de Novo Amparo, hoje chamada Heliópolis. Naquele tempo, o circo ainda era uma grande atração, e naquele fim de mundo, a chegada de um circo, ainda que mambembe, era motivo de alvoroço em toda a cidade.
Lá morava dona Maria, senhora recatada que criava uma jovem adolescente, a qual mantinha guardada a sete chaves, livre do alcance dos moleques mal intencionados. Acontece que dona Maria era tarada por um circo, e logo se animou a comparecer ao espetáculo daquela noite. O circo era tão mambembe, que os espectadores que quisessem assistir à função, sentados, teriam que levar seus respectivos assentos.
À noite, dona Maria chegou cedo com a filha, levando seus banquinhos e se assentaram no melhor lugar, bem perto do picadeiro. Numa bodega próxima, Antônio Soldado enchia a cara de pinga, esperando o espetáculo começar pra ele se achegar.
Começa a função. Bailarinas, trapezistas, mágicos e, é claro, palhaços. Dona Maria e sua formosa filha à tudo assistiam, extasiadas, batendo palmas e pedindo mais. Canelinha começou seu show fazendo perguntas do tipo: Por que o cachorro entrou na igreja? Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Quem é o pai do filho de Zebedeu?
Tava tudo muito bem, até que ele apelou, perguntando: “Onde é que a mulher tem o cabelo mais duro”. Dona Maria fechou a cara, levantou-se, pegou o banquinho a filha e foi saindo, dizendo revoltada: “Vambora, minha fia. Qui esse negocio não vai prestar”.
Quando ela ia saindo, deu de frente com Antônio Soldado que ia entrando, ainda com uma garrafa na mão, que lhe perguntou: “Oxênte dona Maria. Já vai embora? O espetáculo já terminou?
– Terminou não Antonhe. É que o palhaço tá começando a dizer imoralidade. Nem respeitou minha fia dimenó. Imagine que ele tá perguntano onde é que a muié tem o cabelo mais duro.
Antônio Soldado não se fez de rogado, para defender a moral e os bons costumes da família amparense. Pegou dona Maria pelo braço e disse.
– Oxente, dona Maria. Se avexe não. Vamo vortá lá pra dentro. E se ele disser que é na buceta, eu encho ele de bala...

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