terça-feira, 13 de junho de 2023

Segunda é dia de CRÔNICA: A língua que me lambe

Os muitos gramaticais que me perdoem, mas passar uma descompostura na língua, vez ou outra, é fundamental. Porque é certo que todos falamos a mesma língua - algo entre o primo rico latim e o primo pobre português, diriam os sábios -, mas nem toda língua falada é igual.

Ou, resumindo, para você que me entende do seu jeito: minha língua, meu cascalho.

Confesso que tenho as melhores intenções com ela, embora nem sempre correspondido -, mas já estou acostumado a amar sozinho. Minha língua é uma bata de feijão, da qual debulho os sentidos, para alimentar minhas ilusões de perenidade. Não que as palavras se entreguem com facilidade. É preciso cavoucar catacumbas, expor vísceras, batê-las na pedra de lavadeira, para que se limpem da casca, da nódoa, antes de serem passadas em pratos limpos, de serem servidas, de bandeja, para as indecências do desejo, alegorias das paixões, escrituras dos protestos.

Desprovido de coordenação motora e outros atrativos, cobicei a língua como um balacobaco, mas posto que é chama, por vezes, me queima. A língua é meu cavalo, a galope ou estafa. É a extensão de meu fôlego, diante do caminho mais distante entre dois pontos. Algumas vezes, uma curva calipígia. Noutras, um passo trôpego de bêbado, que sai do “pé sujo”, nas madrugadas, rumo a qualquer exílio que me acolha.

A língua que cometo é da boca de todos. Usada por uns e outros, nem por isso deixa de ser minha serventia. Minha língua não é o que lambe, mas o que cospe. Às vezes, a concordata da sintaxe. Aquela que morre ao ponto final, esperançosa de ressuscitar no próximo parágrafo.

Como sabem, tenho vocação de ilha e a língua é meu barco de atracação.

Ela tem o tom entre a permissividade de velha dama experimentada que tudo permite e o recato de uma virgem de véu, grinalda e anáguas de linho. Às vezes, asfixia, como uma mãe que, seca de amor, não gera líquido amniótico. Em outras, se lava no cheiro do curral. É indumentária - dias de minissaia, dias de manto de cardeal - e confessional. Nela, ajoelho meu dolo.

É meu cão-guia. Minha língua é metamorfose peregrina, visto que, nem ela, nem eu, permanecemos sempre no mesmo habitat. Minha língua ruge para mim. E o que escuto é apenas o lamento melancólico das rodas do carro de boi na alma do meu menino.

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