segunda-feira, 25 de março de 2019

Como o Brasil trata menores infratores dos tempos do Império até hoje

Data e motivo da internação: 10/11/1933, homicídio
Resumo: No dia 31 de julho do presente ano, cerca das onze horas, o denunciado Olavo*, surpreendendo premeditadamente, de tocaia, e fazendo uso de espingarda de fogo, alvejou Antonio da Silva pelas costas, um tiro que resultou em lesão corporal descrita na autopsia. O ferimento foi a causa da morte de Antonio. Com esse procedimento, plenamente confessado pelo denunciado, desvendou-se ainda que Olavo, sob promessa de casamento, deflorou a menor Rafaela, tendo com a menor, por diversas vezes, a cópula carnal. A investigação apontou que o motivo do referido assassinato foi o de Olavo procurar eliminar a vida do pai de Rafaela, o senhor Antonio da Silva, o qual ameaçava a separação de sua filha com o denunciado, impedindo os amores de ambos.
*Os nomes de todos os adolescentes foram modificados nessa reportagem para proteger suas identidades.

Os documentos oficiais não relatam qual foi o desfecho para o trágico caso de amor entre os adolescentes Olavo e Rafaela. Eles voltaram a se ver? Ela o perdoou pelo assassinato do pai? Ou abandonou a promessa de casamento para sempre? Sabe-se apenas que Olavo ficou preso até 16 de maio de 1938, quando a Justiça o liberou por bom comportamento. Quando saiu, já maior de idade, tinha aprendido um ofício: auxiliar de roupeiro. De Rafaela não se tem mais notícias.
Entre 1925 e 1935, Olavo foi o único adolescente preso por homicídio no Estado de São Paulo, segundo os prontuários arquivados no Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Casa, instituição para onde são enviados menores infratores atualmente.
Nesses dez anos, apenas 380 crianças ou adolescentes passaram pelo Instituto Disciplinar e Colônia Correcional de São Paulo, um dos embriões das entidades que trabalham com adolescentes envolvidos com o crime. Na verdade, eram raríssimas as infrações praticadas por menores de idade, segundo os prontuários aos quais a BBC News Brasil teve acesso. Quando aconteciam, não passavam de pequenos furtos nas ruas. Entre os casos mais graves, além do homicídio praticado por Olavo, aparece apenas um episódio de estupro.
Em 1927, o Brasil criou seu Código de Menores, a primeira legislação específica para crianças e adolescentes.
Embora sem lei específica para menores, o Código do Processo Criminal de 1830, o primeiro conjunto de leis criminais do Brasil, previa que crianças de sete a 14 anos não poderiam responder criminalmente – depois dos 14, a punição era a mesma dos adultos. Porém, cabia a um juiz decidir se a criança menor de 14 anos tinha "discernimento" no momento da infração – se o magistrado julgasse que ela "sabia o que estava fazendo", poderia puni-la como a um maior de idade.
Depois da Lei Áurea, em 1888, autoridades começaram a se preocupar com o aumento do número de crianças nas ruas.
"Com o fim da escravidão, as crianças negras e muito pobres começaram a ocupar as ruas, a pedir dinheiro e a praticar pequenos furtos de comida", explica Ana Cristina do Canto Lopes, doutora em história da educação pela Universidade de Campinas (Unicamp). "As autoridades, empresários e a população se incomodaram com isso. 'O que vamos fazer com eles? Eles vão estudar nas mesmas escolas que nossos filhos?'".

Crianças pobres tuteladas por famílias ricas

Data de entrada: 10/05/1940
Resumo: Hei as menores Maria, Lúcia e Cristina, 14, 12 e 9 anos, respectivamente, em situação de abandono no conceito legal, visto que sua mãe Maria Xavier , sem recursos para manutenção e educação das filhas, determina que as mesmas, em caráter definitivo até os 18 anos, continuem amparadas por esse juízo.
Data da devolução de Cristina: 22-12-1941
Resumo: Temos a honra de informar à vossa Excelência que, na presente data, a menor Cristina, de 11 anos, foi devolvida a esta diretoria pela senhora Marianita Pinto Nazario, visto que a menor se achava doente.
Em seu mestrado, a historiadora Ana Cristina do Canto Lopes procurou processos no arquivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) que tratavm da vida de menores infratores ou abandonados no final do século 19 e início do 20. Nessa época, a Justiça criou o dispositivo da tutela: juízes podiam autorizar famílias ricas a levar crianças órfãs e pobres para suas casas – elas eram usadas como mão de obra.
"O fato de ser pobre já significava ser órfão. Ou seja, se a criança vivesse em uma situação muito precária, ela podia ser retirada da família e classificada como abandonada. A ideia era tirá-las de circulação", diz Lopes.
"Não consegui provar, mas os documentos antigos sugerem que havia uma espécie de rede de observadores que escolhiam crianças a serem retiradas das famílias. O Judiciário então fazia o trâmite para que fazendeiros ou donas de casa tutelassem essas crianças como mão de obra. Os meninos normalmente trabalhavam na agricultura; as meninas viravam domésticas", conta Lopes.
Na época, o trabalho infantil ainda era permitido no país.
Como contrapartida, os "curadores" precisavam apenas prover a alimentação, saúde e vestuário para as crianças, além de depositar um valor mensal no chamado "cofre dos órfãos", dinheiro que depois podia ser retirado quando o indivíduo completasse a maioridade.
No entanto, há inúmeros relatos de que famílias deixavam de depositar o valor e depois devolviam as crianças, alegando que elas estavam doentes ou tinham "mau comportamento".
A tutela de crianças e adolescentes pobres por famílias mais ricas se prolongou por décadas. "Por muito tempo, a sociedade pensou que a solução para o problema era colocar as crianças para trabalhar. A educação viria pelo trabalho e não pela escola", diz Lopes.
A tutela gerou problemas mais graves, como estupros de meninas por seus curadores mais velhos. Um desses casos ocorreu com a adolescente Fátima, que denunciou ter sido estuprada por seu tutor no interior de São Paulo.
Outro homem, que tutelou uma menina de 12 anos em 1895, recusou-se a devolvê-la à Justiça depois que a esposa dele morreu. Ele argumentava que só poderia liberar a adolescente se conseguisse se casar de novo – o empresário já havia sido denunciado por estuprar outra adolescente anos antes, mas nunca foi condenado.
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