domingo, 23 de abril de 2023

 

 
Reminiscências 
dos anos sessenta

O prazer em escrever sobre tudo quanto me dê à mente, no presente instante, ata-se aos primórdios dos anos 60 quando, transferido da capital gaúcha para a Paulicéia, a par de vir a cursar os dois últimos anos da formação acadêmica, entre outros misteres profissionais, fui secretário do químico Paulo Viotti, então contratado para gerenciar a filial paulista, recém implantada. 

Dr. Paulo, assim era tratado, perfeccionista ao extremo, era todo cuidados em lidar com a correspondência. Não só quanto à clareza do conteúdo, assim como pelo emprego escorreito das palavras, transformando insípidos textos tratando de tintas, em peças de apreciável valor e sabor melhor ainda. Tudo no improviso, conexão oral direta com meus ouvidos e, destes, a meus dedos treinados em se comunicar com as teclas de velha máquina datilográfica. Cartas com duas cópias, intercaladas pois, por dois papéis-carbono. Rascunhos prévios? Nem pensar. 

Cumprido o estágio de dois anos, formado em Economia, com direito à solenidade no Teatro Municipal de São Paulo, março de 1964 – dias antes do verde ter passado a ser a cor dos trajes dos presidentes da República, por alguns anos - retorno à capital gaúcha, e ano seguinte, nova transferência. Desta feita para a Bahia, agora na condição de gerente da fábrica de tintas construção nas cercanias de Salvador, aonde veio a emergir o Centro Industrial de Aratu. Especificamente, situava-se na localidade conhecida por Valéria, às margens rodovia Salvador – Feira de Santana, então BR-28, rebatizada posteriormente para BR-324. 

Tirante o treinamento na área química e no controle de qualidade, eu fora preparado para encarar as múltiplas lides do processo fabril, as questões atinentes à aplicação dos produtos nas áreas predial e industrial, bem como a linguagem da comunicação com os superiores, em tempos sem telefones à longa distância. Então, dei-me conta, de quanto e como foram proveitosas as (im) pertinências de Dr. Viotti. 

Tudo sem exceção, dado à distância, era tratado pela via protocolar. Nossa área comercial se estendia do norte de Minas Gerais até Maranhão e os pedidos dos ferragistas revendedores, transmitidos por representantes regionais nos chegavam, invariavelmente, pela via postal. 

À época, tive a irreproduzível oportunidade de conhecer o extenso solo brasileiro entre as cidades de Governador Valadares nas Minas Gerais e Imperatriz no Maranhão. Também viajei pelo sertão jacente ao Rio São Francisco, dormindo em redes, nos navios-gaiola. 

Tempos quando viajando de carro, - um Volkswagen Pé de Boi, - andei por estradas não merecedores de tal nome. Pé de Boi, alguns não entenderão do que se trata. Abro parênteses elucidando. Assim se chamava o ‘fusquinha’, versão “popular”, sem indicação quanto ao nível do combustível. Em dado momento, findo o mesmo, acionava-se um comando conectado a um depósito suplementar contendo seis litros do precioso líquido. Sabia-se então ser hora de reabastecer, caso contrário... 

Tal caso contrário ocorreu em inóspitas terras, sol poente de rachar, cercanias da antiga cidade de Pilão Arcado, coberta pelas águas da barragem de Sobradinho em inícios dos anos setenta. 

Naquele fim de mundo do sertão baiano, a mais de 700 quilômetros de Salvador, finda a reserva e sem posto de combustível à vista, fui rebocado por uma carroça movida por parelha de bois, de cuja compassada cadência desfrutei inesquecíveis duas horas, quando chegamos na cidadezinha hoje submersa.               

Histórias há, e muitas, cada qual mais incrível. 

Em outra oportunidade, ao estar na ilha de São Luiz do Maranhão, pela vez primeira, 1967, hospedei-me no melhor hotel da cidade. Não havia água. A quota diária, por hóspede, era uma lata de 18 litros, para banho e demais necessidades. 

Em Parnaíba no Piauí, ao primeiro ano de implantação do horário de verão, fui visitar um dos mais antigos representantes da matriz gaúcha. A firma, se não me falha a memória, chamava-se Neves & Cia. Após o almoço e a sesta numa rede de hotel de viajantes, fui ao endereço anotado. Calor insuportável. Diversos artesanatos em carnaúba já comprados. O relógio da igreja matriz ainda no horário antigo. 

“Boa tarde, senhor Neves”, saudei a um homem avançado nos anos, em pé, postado frente a uma daquelas escrivaninhas vistas em filmes de cowboy americanos, com lâmpada pendente à altura dos olhos, protegidos por uma viseira à moda antiga. Ao cumprimento, acrescentara haver notado estarem os relógios locais ainda no horário antigo. De pronto, senhor Neves contestou: “Acontece que aqui a gente segue o horário de Deus!” 

Acima fiz referência a objetos artesanais em carnaúba, típicos da cidade de Parnaíba. Saiamos do Piauí e rumemos a Alagoas. Em Maceió, no aeroporto eram incontáveis os artesanatos produzidos com a carapaça de tartarugas. Lindíssimos. Prendedores de cabelo e gravatas, pentes, calçadeiras, piteiras, jangadas, sei lá mais quantas coisas nascidas de mãos dos artesãos com inusitadas belezas. Hoje, politicamente incorretas. 

Em Teresina, certa feita, às horas tantas da noite, a bordo do primeiro jato comercial do Brasil, um Caravelle, substituto dos antigos DC-3 - os famosos ‘pinga-pinga’ ou ‘leiteiros’ - lá chegando, não encontrei taxi. Acreditem. Contentei-me em ‘pongar’ na carroceria de uma caçamba que fazia as vezes de taxi quebra-galho. 

A época, jovem com menos de 30 anos, a tudo encarava com a maior naturalidade. Não me dava conta da enorme distância existente entre o incipiente Norte e o Sul maravilha, bem como do motivo pelo qual a maioria dos técnicos, passado pouco tempo, optava por retornar às origens. 

Razão tinha o presidente do grupo para o qual trabalhei 15 anos, ao afirmar “Pioneirismo custa caro”, isso dito pelo viés empresarial. Passados quase cinquenta anos, eu abraço e ratifico tal assertiva, acrescentando ter o pioneirismo sido caro não somente aos investidores, mas também aos trabalhadores, como eu e outros tantos que, enraizados em solo baiano, alteraram o rumo de suas vidas. 

Ao converter-me de ‘tinteiro’ em ‘charuteiro’, mal sabia estar o bem-bom, apenas começando. 

Assim, depois das tintas - meados dos anos setenta - vieram os charutos, os quais, pequeno sendo o país para tanto, ejetaram-me a voos outros, mais distantes e, igualmente, desafiantes. 

Dos charutos muito falei em trezentas crônicas editadas entre 1997 e 2016. Também fazem parte do passado, embora as venha revisando e republicando em páginas virtuais. 

Em resumo, foi período de novas crenças, novos sabores, novas avenças, novos amores. 

De bom, tirante as consequentes descrenças, dissabores, desavenças e desamores, um caminhão lotado de histórias a contar; dez filhos (5 homens e 5 mulheres) que, até aqui, brindaram-me com 22 netos/as e 7 bisnetos/as; um bem-querer sem tamanho aos tropeços do destino, a eterna e saudosa lembrança dos hóspedes do andar de cima e a desmedida gratidão aos companheiros ainda vivos, poucos é verdade que, com engenho e arte, comigo compartilham delícias de uma ‘saudável’ longevidade.

Hugo A de Bittencourt Carvalho

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