Jaron Lanier é uma das vozes mais respeitadas do mundo tecnológico. Um
visionário, ele ajudou a criar nosso futuro digital e cunhou o termo realidade
virtual, nos idos dos anos 1980. Além de ser um filósofo da internet, Lanier é
um músico clássico, que tem uma coleção de mais de mil instrumentos.
A despeito do visual alternativo - com longos dreads nos cabelos que
lembram o estilo rastafari - e de se comportar como um hippie, Lanier nunca
usou drogas. Nem quando era amigo de Timothy Leary, o pioneiro do alucinógeno
sintético LSD. Leary o chamava de "grupo de controle", por sua
rejeição a químicos.
Lanier é autor de vários livros sobre o impacto da tecnologia nos
indivíduos e no comportamento coletivo. Neste mês, lançou The Dawn of the
New Eveything ("O Despertar de Todas as Novas Coisas", em
tradução livre).
O título se refere ao momento em que o autor colocou, pela primeira vez,
um desses capacetes que nos levam ao mundo da realidade virtual - momento que
descreve como "transformador" e como a "abertura de um novo
plano de experiência".
Ele foi um dos primeiros a desenvolver produtos voltados à realidade
virtual, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Mas, embora seja um dos
protagonistas da história do Vale do Silício, é um crítico dos valores
propagados por empresas como o Facebook e o Google, além de dizer que evita as
redes sociais. "Evito as redes pela mesma razão que evito as drogas -
sinto que podem me fazer mal," diz.
Lanier manifesta preocupação com o efeito "psicológico" do
Facebook sobre os jovens, especialmente na formação das personalidades dos
adolescentes e na construção de relacionamentos. "As pessoas mais velhas,
que já têm vários amigos e perderam contato com eles, podem usar o Facebook
para se reconectar com uma vida já vivida. Mas se você é um adolescente e está
construindo relacionamentos pelo Facebook, você precisa fazer a sua vida
funcionar de acordo com as categorias que o Facebook impõe. Você precisa estar
num relacionamento ou solteiro, tem que clicar numa das alternativas
apresentadas", explica.
"Isso de se conformar a um modelo digital limita as pessoas, limita
sua habilidade de se inventar, de criar categorias que melhor se ajustem a você
mesmo."
Ele também
critica a forma como Facebook, Google, Twitter e outros sites utilizam os dados
de usuários.
"Existem dois tipos de informações: dados a que todas as pessoas
têm acesso e dados a que as pessoas não têm acesso. O segundo tipo é que é
valioso, porque esses dados são usados para vender acesso a você. Vão para
terceiros, para propaganda. E o problema é que você não sabe das suas próprias
informações mais."
Busca
por um mundo alternativo?
Lanier entrou pela primeira vez em contato com a ideia de realidade
virtual na década de 1980. A empresa dele, a VPL, criada em 1985, foi pioneira
em "capacetes com tela", desenvolvidos para mostrar mundos gerados
por computadores que enganam o cérebro.
Desde o primeiro momento, Lanier reconheceu que a realidade virtual
teria duas "faces"- uma com "potencial para o belo" e outra
"vulnerável ao horripilante".
"O Despertar de todas as novas coisas" conta a história do
surgimento da realidade virtual. Mas também é uma autobiografia de um homem
cujos primeiros anos de vida foram absurdamente fora do comum, marcados pela
tragédia, a extravagância e o perigo.
A mãe dele, nascida em Viena (Áustria), havia sobrevivido a um campo de
concentração e ganhava a vida fazendo, remotamente - da casa da família no Novo
México (EUA) - apostas na bolsa de valores de Nova York.
Para atender a uma inesperada ganância, ela comprou um automóvel novo da
cor que Lanier escolheu. Mas, no dia em que foi aprovada no exame de direção,
morreu num acidente que, depois se saberia, foi causado por uma falha mecânica
daquele modelo de carro.
"Choramos durante anos", escreveu Lanier sobre sua própria
reação e a do pai. A tristeza foi agravada pelo antissemitismo e a intimidação
de vizinhos e colegas de classe. Um professor disse que a mãe dele
"merecia" o que aconteceu, por ser judia.
Depois que sua
casa ardeu em chamas por um incêndio criminosamente provocado, foram viver em
uma tenda de acampamento até que o pai sugeriu que ele desenhasse uma casa para
os dois.
"Estava convencido de que nosso lar deveria ser feito de estruturas
esféricas similares as que encontramos nas plantas", conta, no livro. Ele
recorda que projetou modelos com cigarros, seu pai obteve permissão das
autoridades para construir e, juntos, montaram uma edificação com formato de
bola de golfe.
O pai de Lanier viveu naquela casa durante 30 anos. Um ano depois da
construção, quando tinha 13 anos, Lanier foi à universidade local fazer um
curso de verão de química.
Quando terminou, continuou assistindo às aulas durante o semestre, até
que os professores não tiveram outra escolha senão aceitá-lo como estudante
universitário. Ele aprendeu a fazer queijo de cabra para vender e pagar os
custos com sua educação, e costurava suas próprias roupas.
Realidade
alternativa
Seria natural pensar que, depois de tudo o que viveu, Lanier quisesse se
dedicar a criar realidades alternativas, com cálculos e pixels no Vale do
Silício.
Mas, ele nega que o objetivo tenha sido fugir do mundo real. Para
Lanier, "a maior virtude da realidade virtual é que, quando você regressa,
de repente percebe a realidade com frescor, como se fosse nova".
"Em vez de conceber a realidade virtual como um lugar a que se vai
para deixar algo para trás, a mim me parece que ela está subordinada à
realidade", explicou à BBC.
Ser
lagosta
Enquanto estudava informática, leu o trabalho de Ivan Sutherland, que,
na década de 1960, foi uma das primeiras pessoas a criar um capacete com tela
que permitia a uma pessoa ver um mundo digital por meio de programas de
computador.
Depois de uma
temporada em Nova York, Lanier se mudou para a Califórnia e se uniu à
incipiente indústria dos videogames. Com o dinheiro que ganhava, financiava
experimentos de realidade virtual com outros matemáticos - junto com alguns
deles fundou a empresa VPL.
Numa ocasião, Lanier e sua equipe ficaram obcecadas com a criação de
avatares não humanos. As lagostas representavam um grande desafio, pela
quantidade de extremidades, mas eles descobriram que o cérebro humano se adapta
a usar apêndices (como antenas, patas e garras) com muita rapidez.
"A maioria das pessoas aprende a ser uma lagosta com relativa
facilidade", escreve. "Para mim, foi mais fácil ser uma lagosta que
comer uma."
Um
futuro virtualmente real
A empresa de realidade virtual de Lanier durou somente cinco anos, mas o
legado dessa tecnologia se evidencia em cada vez mais áreas.
Por causa do alto custo, a realidade virtual não se desenvolveu de forma
massiva. No entanto, fabricantes de automóveis e aviões (para provar novos
desenhos de cabines), os médicos (para treinamento e tratamentos, como terapia
para transtorno de stress pós-traumático), e os militares, continuam a usar a
essa tecnologia.
Mas, para Lanier, a realidade virtual ainda está "presa ao
passado" e não se desenvolveu plenamente.
"O que a maioria tem visto é uma versão de videogame ou um filme
(com tecnologia de realidade virtual). Isso é típico de novos meios. No início,
o cinema se parecia com uma peça de teatro. A realidade virtual ainda não teve
a oportunidade de se libertar e ser o que é."
O filósofo da internet também faz projeções preocupantes sobre o futuro,
com o crescimento da automação e o desaparecimento de empregos.
Para ele, é preciso mudar o modo como a economia está organizada, para
evitar que a robótica crie uma massa de pessoas com fome e sem ocupação.
"Uma ideia é criar um contrato social, pelo qual pagamos uns aos
outros por coisas que nos interessam online. O objetivo é garantir o sustento
das pessoas quando as máquinas forem boas o suficiente para dirigir os ônibus e
caminhões", sugere.
"Ou nós monetarizamos o que as pessoas fazem ou adotamos o
socialismo... Ou deixamos um monte de gente passar fome, porque não achamos que
elas servem mais. A terceira opção parece ser a que está sendo adotada, pelo
menos nos Estados Unidos." (BBCBrasil)
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