quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Vivendo para servir

    

Conheci ao longo da vida pessoas que parecem ter nascido apenas para servir ao próximo. Elas não tinham nada de especial, nenhuma capacidade extraordinária. Eram, e são, pessoas comuns, de todas as classes sociais, religiões, ideologias políticas, raças, enfim, tinham em comum apenas o prazer que sentiam em servir aos seus semelhantes. Algumas eram formadas, outras apenas o curso fundamental ou médios, e outras tantas eram até analfabetas, mas nem por isso burras ou ignorantes. E também me pareciam estar sempre muito felizes sendo quem eram e com o que faziam para viver. Só se explica isso do ponto de vista espiritual.

         Quando minha mãe adotiva se casou, levou para ajudá-la na lida diária da nova casa, uma empregada que viera da zona rural para trabalhar  na casa dos meus avós. Maria da Hora, era o nome da figura. Baixinha, gordinha, alegre, uma simpatia. Quando eu cheguei os três filhos do casal já eram rapazes, adultos, e no meu batizado ela me levou enrolado numa toalha e entregou aos padrinhos na hora de batizar. Ela tinha o maior orgulho disso, pois era a minha “Madrinha de Apresentação”, algo que nem se usa mais, mas naquele tempo se dava muita importância. Como ela era a Babá oficial da casa, e os meus irmãos a chamavam de Bá, era esse o nome pelo qual eu a chamava também. Ela já estava velha quando eu cheguei, mas ainda lúcida e forte, apesar de manter sempre um charuto apagado no canto da boca (aceso nas horas vagas), e já sentia efeitos de catarata e hipertensão. Era “pau pra toda obra”. Cuidava de mim, cozinhava para a família, lavava pratos e panelas, limpava a cozinha e ainda encontrava tempo para cuidar das plantas. Era benzedeira, daquela que tira mal olhado e até verrugas (acredite quem quiser). Vivia alegre, contando estórias e cantando antigas canções. Nunca a vi reclamar de nada. Deu seus últimos suspiros praticamente nos meus braços.

         Na família havia também “Tia Tereza”. Uma “Tia” por afinidade. Difícil não gostar dela. Sempre pronta para socorrer quem necessitasse da sua ajuda. Cuidava dos doentes, auxiliava na cura das suas doenças, cuidava de ferimentos, pancadas e aplicava injeções sob receita médica. Sempre disposta a servir quem quer que fosse, e sempre com um sorriso nas lábios. Um dia notei algo estranho no seu braço e perguntei o que seria aquilo. Com a maior naturalidade e um riso nos lábios, me disse que achava que poderia ser “um cancerzinho de pele”. A vida nos afastou e não sei do que ela veio a falecer, mas eu tenho certeza que foi com um sorriso nos lábios.

         Não conheci o Dr. Fernando Filgueiras, famoso médico em Salvador. Mas, de tanto ouvir Bernardino (Pipiu) Bahia falar dele, era como se eu o conhecesse. Segundo Pipiu, ele foi o que se pode chamar verdadeiramente de médico. Não dava a menor importância para bens materiais nem posição social. Tinha um velho carro importado que um paciente lhe dera de presente. Nenhuma “especialidade” porque era especialista em tudo. Desde unha encravada, braço de menino travesso quebrado, ou câncer generalizado. Trabalhava em Hospitais e, rico ou pobre, a atenção era a mesma. Segundo Pipiu, certa vez o encontrou no pronto socorro do hospital encanando o braço de um garoto. As mãos e as roupas sujas de gesso, e conversando alegremente com o menino. “Naquele momento eu vi um verdadeiro médico, se realizando em sua profissão”, comentou Pipiu mais tarde. Terminado o serviço, saiu andando com Pipiu pelos corredores do hospital e, no trajeto, um jovem se aproximou e lhe entregou um envelope dizendo que era o seu pagamento. Ele recebeu enfiou no bolso sem abrir pra contar, e continuou andando e conversando demonstrando total desapego a questões financeiras.

         Gaguinho era o apelido do meu amigo e compadre Lourival Costa Filho. Meu colega do curso primário na escola da professora Elizete, sua tia. A afinidade foi tanta que quase sempre onde um ia o outro ia também. Futebol, cinema, festas, viagens, quase sempre estávamos juntos. Até quando ele se casou e foi morar em Salvador, vez em quando eu ia lá ver ele. Ele voltou para Feira de Santana e aí a gente fez um monte de coisa juntos. Antes, porém, houve algo que me fez aproximar tanto dele. Eu fiquei doente, e como sempre acontece, os amigos foram me visitar. Na primeira semana a casa estava sempre cheia. Na segunda, já não eram tantos assim. E eu não censurava, porque a vida continua e as pessoas têm os seus afazeres e suas vidas para viver. Com o tempo (eu fiquei seis meses acamado), todos os amigos se foram, mas ele ia lá todos os dias para conversar um pouco comigo. Mas isso não era um privilégio meu. Ele era assim com todo mundo. Sempre solícito, sempre disposto a ajudar quem precisava. Não era rico, pelo contrário, passava por muitas dificuldades, mas criou e educou os filhos e, se fez mal a alguém, foi só a ele mesmo, porque o fumo e o álcool ceifaram sua vida muito cedo.

         Eu fico me perguntando o que leva algumas pessoas a viverem mais para os outros do que para si mesmas. É claro que eu sei a resposta, mas, como eu disse, só pode ser explicado do ponto de vista espiritual. Materialistas jamais irão entender.

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