As pesquisas de rejeição deixam claro: Jair Bolsonaro e
Fernando Haddad são odiados. Quem vota em um rejeita total e
absolutamente o outro. Para entender exatamente por que isso acontece,
não tem outro jeito. Precisamos esquecer por alguns instantes os valores
e planos de governo de cada um e focar num objeto inquestionavelmente
mais complexo: nosso cérebro. E ele traz à tona uma resposta incômoda, a
de que somos mais intolerantes do que admitimos.
É o que aponta o neurocientista americano Joshua
Greene, de Harvard, em seu livro Tribos Morais – A Tragédia da
Moralidade do Senso Comum. Greene defende um pilar da psicologia
evolutiva: o de que nosso cérebro não foi projetado para encarar a
tarefa de viver em grupos complexos. Nossos instintos não toleram a
ideia de conviver com quem pensa de forma distinta – muito menos oposta.
A evolução nos conduziu para a vida tribal. Entenda “tribal”
não como algo primitivo, mas como uma família estendida. Fomos
programados para conviver em grupos pequenos, com indivíduos que encaram
a vida de uma forma parecida com a nossa – que comungam das mesmas
crenças, hábitos e valores. Quem não comungasse era um inimigo, um
predador humano, alguém pronto para roubar sua comida e matar você ao
longo do processo.
Foi dessa forma que organizamos nossa vida coletiva por
centenas de milhares de anos. O cérebro criou mecanismos para proteger
os laços tribais. Um deles é o “viés de confirmação”. Somos
recompensados com pequenas doses de dopamina, o neurotransmissor do
prazer, cada vez que ouvimos alguém repetir crenças e valores iguais aos
nossos. Isso indica que o sujeito é um membro em potencial da sua
família estendida. Alguém que irá lhe proteger.
Por volta de dez mil anos atrás o mundo começou a ficar melhor,
e menor. A agricultura, o comércio e as primeiras cidades nos obrigaram
a conviver com outras tribos, outras famílias estendidas, que
cultivavam valores distintos.
O comportamento tribal enfraquece a razão na hora do voto: coloca superstições no centro das nossas escolhas.
Era uma vitória do neocórtex, a parte mais complexa do cérebro –
que nos difere basicamente de qualquer outro animal. Graças a ele
conseguimos manter os instintos na rédea curta e conviver de forma
civilizada (não é à toa que a palavra “civilizada” vem de “cidade”).
Mas esses dez mil anos não bastaram para reprogramar a massa
cinzenta. Como diz Steven Pinker, colega de Greene em Harvard, nossos
cérebros jamais saíram para valer das cavernas. O viés de confirmação
segue firme. E os predadores humanos só mudaram de nome. Para quem vota
em Haddad, esses predadores foram batizados como “bolsominions” e
“fascistas”. Para quem vota em Bolsonaro, eles atendem por “petralhas”,
“comunistas”.
Algumas diferenças, de acordo com Greene, são menos
conciliáveis que outras. As “tribos morais” de hoje tendem a discordar
com mais veemência justamente nos temas que atiçam nossos instintos
primitivos: sexo e morte. A sexualidade alheia gera estresse basicamente
por lidar com um impulso primitivo. Logo, o homofóbico espuma ao falar
sobre homossexualidade. E o defensor dos direitos LGBTs também irá
reagir de forma sanguínea se detectar algum sinal de homofobia no
discurso alheio – mesmo que se trate de um alarme falso.
Outro tema que aciona o lado selvagem é o combate ao crime,
pois é algo ligado ao conceito de morte. Daí o tom alto de quem defende a
pena capital, o fim das políticas de direitos humanos para
presidiários, o atirar para matar. Cada expressão dessas é uma torrente
dopaminérgica para quem compartilha dessas crenças e valores. As reações
são destemperadas do outro lado também. Às vezes, basta não seguir
certas cartilhas de pensamento para virar alvo. Exemplo: quem acha que a
prisão não serve apenas para recuperar o condenado, mas também para
puni-lo, pode acabar tachado de “assassino”.
Se sexualidade e morte ativam ódios, aborto talvez seja o mais
espinhoso de todos os temas, já que envolve sexo e morte. Desnecessário
elencar aqui os argumentos pró e antiescolha. O ponto é que se trata de
um debate que, não raro, decai para a barbárie – o neocórtex sabe que
quem é a favor da legalização do aborto não é “matador de crianças”;
sabe que o povo contra não é “nazista”. Mas o sistema límbico, o pedaço
primitivo da massa cinzenta, não sabe de nada. E parte para o ataque
sujo contra quem vai contra a posição da sua bolha, seja ela qual for.
Para deixar as coisas ainda piores, agora temos uma máquina
anticivilizatória. Uma ferramenta criadora de bolhas, que nos faz voltar
aos tempos tribais: as redes sociais. Como o algoritmo do seu Facebook,
interessado em vê-lo dedicar longas horas conectado a ele, apresenta
conteúdo com base naquilo que você se interessou no passado – textos que
parou para ler, vídeos que assistiu, imagens que curtiu –, a tendência é
que ele reforce ideias preconcebidas, concentrando no seu perfil
postagens de páginas e amigos que replicam conteúdo que em geral você
concorda.
Ou seja, as redes sociais alimentam um isolacionismo das tribos
morais. Nós não estamos apenas ouvindo cada vez menos uns aos outros,
interessados em alcançar exclusivamente o nosso próprio grupo social;
nós também estamos acirrando os ânimos em relação a quem pensa
diferente, reforçando os nossos preconceitos.
Esse comportamento tribal enfraquece a nossa capacidade de usar
a razão na hora do voto, colocando superstições no centro das nossas
escolhas. (Super Interessante)
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