O aborto realizado legalmente em uma criança de 10 anos que foi estuprada no Espírito Santo virou campo de batalha no Brasil.
Após
autorização judicial, a menina foi levada a outro Estado no domingo
(16/08) para interrupção da gravidez. Ela relatou que sofria abusos
sexuais do tio desde os 6 anos e que não contava para os outros porque
ele a ameaçava. O tio da criança está foragido.
Embora o caso
tenha virado pano de fundo de uma briga ideológica e venha sendo tratado
como algo inédito, dados oficiais revelam que ocorrem no Brasil, em
média, seis internações diárias por aborto envolvendo meninas de 10 a 14
anos que engravidaram após serem estupradas.
Esses casos envolvem procedimentos feitos no hospital e internações após abortos espontâneos ou realizados em casa, por exemplo.
"Há
uma naturalização desta violência. O pessoal já nem presta mais atenção
em menina de 13 ou 14 anos grávida. O pessoal tá começando a prestar
atenção na gravidez de 10, 11 anos de idade", diz a advogada Luciana
Temer, presidente do Instituto Liberta, que atua no combate à exploração
sexual de crianças e adolescentes.
Ela defende, ainda, que só faz
sentido tratar desse assunto a partir de um caso específico se for para
mostrar que essa violência é muito mais comum do que se imagina. "É uma
história tristíssima. E infelizmente é uma de muitas, o Brasil está
lotado de casos como este."
Segundo dados tabulados pela BBC News
Brasil no Sistema de Informações Hospitalares do SUS, do Ministério da
Saúde, o Brasil registra ao menos seis abortos por dia em meninas de 10 a
14 anos, em média.
Só em 2020, foram ao menos 642 internações. O
país registra também uma média anual de 26 mil partos de mães com
idades entre 10 a 14 anos.
Desde 2008, foram registrados quase 32 mil abortos envolvendo garotas dessa faixa etária.
Se
forem consideradas as 20 mil internações nas quais constam dados de
raça ou cor de pele, 13,2 mil envolviam meninas pardas (66%) e 5,6 mil,
de brancas (28%). Esses dados incluem abortos realizados por razões
médicas, espontâneos e de outros tipos.
Das 20 cidades com mais
internações em números absolutos, todas são capitais, exceto Duque de
Caxias (RJ), Feira de Santana (BA) e Campos de Goytacazes (RJ). Não há
dados disponíveis sobre o sistema privado de saúde.
Casos de
estupro (não só de crianças) são uma das três situações em que o aborto é
permitido no Brasil. As outras duas são anencefalia ou risco de vida
para a mãe.
Nos últimos dez anos, o Brasil registrou, em média,
uma interrupção de gravidez por razões médicas por semana envolvendo
meninas de 10 a 14 anos. Em 2020, foram ao menos 34 ocorrências nesta
faixa etária e 1.022 incluindo mulheres de todas as idades.
"Toda
menina grávida de até 14 anos foi estuprada, não importa a
circunstância. O estupro de vulnerável é justamente em função da idade",
aponta Luciana Temer, que também é doutora em direito pela PUC-SP e
ex-secretária da Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo.
Exposição ilegal
Violando
a legislação que protege crianças e adolescentes no Brasil, a militante
de extrema direita Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, divulgou
detalhes que podem identificar o caso, inclusive a localização do
hospital em que a criança estava no momento.
Luciana Temer destaca
que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) protege a
identificação de todas as crianças e adolescentes. "O ECA protege
inclusive o nome do menor infrator, imagina a menina vítima. Não podia
dar nome, nem o hospital, nenhum dado."
No local, um grupo de
pessoas fez um protesto contra o aborto legal da criança estuprada e
chegou a gritar "assassino" para tentar atacar o médico responsável pelo
procedimento autorizado pela Justiça, segundo vídeos divulgados pela
internet.
Por outro lado, também foram ao local mulheres que
apoiam o direito da criança de realizar o aborto legal. Elas defenderam
que a vida da menina está em risco e que o aborto legal é um direito
dela.
"Não vamos abrir mão da vida de uma menina de 10 anos.
Gravidez forçada é tortura. Gravidez aos 10 anos é morte. Aborto legal,
seguro e gratuito para não morrer", repetiu o grupo.
Luciana Temer aponta que a grande exposição do caso tende a aumentar o estigma em relação à vítima de violência sexual.
"Toda
violência sexual, principalmente contra meninas e meninos muito novos,
tem consequências sérias para eles e para as famílias. E quanto mais
notabilizado for o caso, pior. Esta menina vai ficar estigmatizada, essa
família vai ficar estigmatizada com toda essa repercussão", diz.
"Se
eu fosse avó pediria indenização financeira, inclusive por danos
morais, para quem divulgou. É um absurdo isso. Virou briga ideológica e
radical." (BBC News Brasil)
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