segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Covid-19: tempos de incerteza testam a saúde mental

As transformações no modo de viver e morrer impostas pelo novo coronavírus podem começar em breve a cobrar um preço alto sobre a saúde mental das pessoas – se já não o estão fazendo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), de quando surgiu na China, em dezembro de 2019, a 31 de agosto deste ano, o vírus já infectou mais de 25 milhões de indivíduos, matou 844.312 e continua se espalhando. Na tentativa de frear a disseminação do SARS-CoV-2, causador da covid-19, governos e autoridades de saúde de diversas nações aplicaram regras que alteraram a forma como as pessoas vivem e se relacionam umas com as outras.
De uma hora para outra, comércio, indústria, escolas e centros de lazer e atividade física fecharam e a mobilidade das pessoas ficou restrita. Quem pôde e dispôs dos recursos necessários isolou-se em casa, adotou o trabalho remoto e passou a ajudar os filhos com as aulas virtuais. Homens e mulheres começaram a usar máscara em locais públicos e o contato físico foi desestimulado – desapareceu o beijo no rosto e até o aperto de mão. Os que precisam ir às ruas convivem com receio de contrair o vírus e quem se infecta experimenta, além de sintomas físicos, o medo de desenvolver a forma grave da doença e precisar de internação. Nos hospitais, os pacientes perdem o contato direto com a família – em certos casos, conseguem contato remoto – durante um tratamento prolongado no qual só interagem com a equipe de saúde. Os médicos e a equipe de enfermagem, por sua vez, vivem rotinas exaustivas e angustiantes diante do elevado número de mortes e do risco de se infectar e levar o vírus para casa. O caminho dos que morrem ficou mais solitário, e quem perde alguém para a covid-19 tem de lidar com a despedida incompleta.

Sobrecarga de estresse
Apesar da capacidade humana de se adaptar a transformações, as mudanças e o surgimento de tantas adversidades em pouco tempo podem gerar uma sobrecarga de estresse que já preocupa as autoridades internacionais de saúde e os profissionais de saúde mental. Em 13 de maio, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou um relatório chamando a atenção de governos do mundo todo para que adotem medidas para reduzir o possível impacto da pandemia de covid-19 sobre a saúde psíquica da população. “A saúde mental e o bem-estar de sociedades inteiras foram severamente afetados por essa crise e são uma prioridade que deve ser tratada com urgência”, informa o documento. “É provável que haja um aumento duradouro no número e na gravidade dos problemas de saúde mental.”
A OMS considera a saúde mental uma área negligenciada, que recebe dos países, em média, 2% do orçamento destinado à saúde, embora as doenças neurológicas e psiquiátricas afetem quase 1 bilhão de pessoas – segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), os transtornos mentais geram custos diretos e indiretos de US$ 2,5 trilhões (4% do PIB mundial). “Se não agirmos, haverá um grande percentual de pessoas seriamente afetadas, o que terá um impacto sobre a economia desses países”, afirmou a psicóloga Dévora Kestel, diretora do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS, à tevê alemã Deutsche Welle no dia seguinte ao lançamento do relatório.
Alguns especialistas sugeriram que os problemas de saúde mental podem, eles próprios, transformar-se em uma nova pandemia. Por ora, no entanto, não é possível saber a dimensão que o problema pode assumir. “Não houve tempo suficiente para coletar dados que permitiriam responder adequadamente a essa questão”, afirmou a psiquiatra norte-americana Carol S. North, especialista em traumas e desastres do Centro Médico Sudoeste da Universidade do Texas, por e-mail a “Pesquisa Fapesp”. Para North, as pesquisas feitas em pandemias anteriores, como a da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), em 2003, são limitadas. “Precisamos esperar que bons dados mostrem como a covid-19 está afetando as pessoas”, propõe.

Sofrimento psicológico
Apesar do pouco tempo desde o começo da pandemia, estudos iniciais sugerem que as mudanças na rotina e o temor de contrair a infecção e adoecer começam a elevar o número de casos de sofrimento psicológico – e possivelmente de problemas psiquiátricos – em alguns países. Realizados por meio da internet, esses levantamentos consistem na aplicação de questionários a um número modesto de participantes. Seus resultados, longe de definitivos, possibilitam ter uma ideia do que pode vir pela frente. Informações mais precisas só devem ser conhecidas em meses ou anos, quando os pesquisadores tiverem melhores condições e mais tempo para aprofundar os estudos sobre esse tema.
Na China, pesquisadores da Universidade Normal do Noroeste enviaram, por meio de um aplicativo de troca de mensagens, perguntas que permitem identificar sinais de depressão, ansiedade, consumo excessivo de álcool e bem-estar psicológico para 1.074 pessoas com idade entre 14 e 68 anos. Quase dois terços eram moradores da província de Hubei, onde se localiza a cidade de Wuhan, berço da atual pandemia. Segundo os resultados, publicados em abril no “Asian Journal of Psychiatry”, a proporção de indivíduos com sinais de depressão grave era duas vezes mais alta em Hubei (11,4%) do que nas demais províncias chinesas (5,3%) que haviam sido menos afetadas pelo novo coronavírus e serviram de parâmetro de comparação. Algo semelhante foi observado com o consumo abusivo e a dependência de álcool, respectivamente, de 11% e 6,8% em Hubei e de 1,9% e 1% no resto da China.
Ainda em abril, um grupo da Universidade de Sichuan, também na China, reportou na revista “Medical Science – Monitor” os achados de outro levantamento virtual. Nele, 1.593 adultos de Hubei e de quatro províncias vizinhas foram entrevistados em fevereiro, no auge do surto, semanas após a adoção de medidas mais restritivas de isolamento. A proporção de pessoas com sinais que caracterizam ansiedade e depressão foi, respectivamente, de 13% e 22% entre aquelas que enfrentaram a quarentena, índices duas vezes maiores do que os observados entre os indivíduos que puderam circular e levar uma vida mais próxima à normal (7% e 12%).

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