terça-feira, 18 de agosto de 2020

O feitor do universo

Agnaldo, 87 anos, cardiologista, Salvador; Benício, 73, ortopedista, Feira de Santana; Josias Cavalcanti, 62, ginecologista, Recife; George, 55, cirurgião, Natal; Carlos Estorari, 48, clínico, Parauapebas; Francisco, 43, Samu, Montes Claros; Lucas, 32, neurocirurgião, Ivaiporã; Marco, 35, radiologista, Aracaju; Monique, 29 clínica, Cuiabá; Paloma, 27, clinica, Teófilo Otoni. Do velho mestre de nossa mais antiga faculdade de Medicina, à jovem recém-formada, eles compartilham um destino comum: eram médicos e foram vítimas da Covid-19. Escolheram salvar vidas e devotos dessa escolha não puderam se salvar.

Os nomes acima, e a localização, mostram que a doença não respeita geografia, sexo, especialidades, aparência de boa saúde, ou fragilidades, para exercer sua evolução dura, e imprevisível. De mínima letalidade, dirão os especialistas, e os desprovidos de empatia; de perda, dor lancinante, e luto incompleto, dirão os que perderam os tocados por ela.
As idades mostram que a doença tem uma agressividade única com os que a desafiam, e que expostos a uma maior carga viral dançamos com o perigo ao exercermos a medicina, porque nunca sabemos quando as fiandeiras do tempo decidem cortar o fio da vida e ética e humanamente não podemos negar socorro. São esses os nomes, escolhidos ao acaso, nos últimos dias, mas poderiam ser quase cento e cinquenta, outros, a maioria de jovens, em uma tragédia irreparável.
Salvo em guerra, nunca vimos tantos profissionais de uma área, morrerem em período tão curto, a maioria em direta e heroica atividade de enfrentamento à pandemia, e a esse “anunciador de caos”, invisível e concreto, capaz de mudar o urbano, a geopolítica, a economia, a proximidade do humano, os costumes, os abraços e o luto, como um feitor do universo.
É preciso que as pessoas se conscientizem da brutal tensão e risco que vivem todos que estão dentro de um ambiente hospitalar, fazendo renúncias, escolhendo a solidão do afastamento familiar, cultivando o temor das despedidas, presenciando diariamente a frustração da perda, a impotência da cura, girando a roleta-russa da contaminação. E os que sobrevivem, não saem ilesos e sem cicatrizes na memória do estresse continuado.
Não podemos ser uma sociedade egoísta, que não reflete sobre a conseqüência da renúncia à ciência, e o desrespeito as recomendações de saúde, por vaidade ou um hedonismo desnecessário, lesivo, e vazio.
Nossos atos têm custos a terceiros, e a vida do profissional de saúde não é um bem reciclável, ou descartável, pois, quando se perde alguém a saudade se torna um asilo, e a lembrança até é um fiapo de consolo, mas a tristeza é um vazio incompleto e sem escuta. Como sabe o silêncio de Benícios, Moniques, e Palomas.

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