Dirce
ouviu a frase pela primeira vez quando tinha 11 anos, dita por uma
colega no colégio interno, e depois muitas outras vezes ao longo da
vida.
"Aquela foi a última vez que recebi essa pecha", suspira
ela aos 87 anos, em conversa com a BBC News Brasil, em seu apartamento
no Flamengo, na zona sul do Rio de Janeiro.
A pecha de assassino
acompanhou toda a vida de seu pai, Dilermando de Assis - que entrou para
a história como o homem que matou o escritor Euclides da Cunha.
O célebre autor de Os Sertões
é o homenageado deste ano na 17ª Festa Literária Internacional de
Paraty (Flip), de 10 a 14 de julho. A justa homenagem a um dos expoentes
da literatura brasileira no evento é, para Dirce, motivo de
"preocupação, aflição e agonia".
"Porque sei que vão falar muito no papai, e
falar mal, certamente, porque muita gente não conhece a história como
foi", acredita ela. "Toda vez que se toca no Euclides da Cunha, o
assassino dele vem à tona."
Dilermando foi amante de Ana Emília Ribeiro da Cunha, a mulher de Euclides.
O
caso começou em 1905, durante uma longa expedição do escritor pela
Amazônia, chefiando a comissão Mista Brasileiro-Peruana de
Reconhecimento do Alto Purus, na fronteira entre os dois países.
Já
mãe de três filhos de Euclides, Ana, de 33 anos, se apaixonou por
Dilermando, um jovem cadete de 17 anos. Viveram quatro anos de romance
proibido, e tiveram dois filhos fora do casamento.
Em 15 de agosto de 1909, o escritor chegou armado à casa de
Dilermando para vingar sua honra. Travou-se um duelo, e Dilermando levou
cinco tiros - mas era campeão de tiro, revidou, e matou Euclides da
Cunha.
Dilermando foi absolvido por legítima defesa, mas foi condenado pela imprensa da época e pela opinião pública.
O
caso se desdobrou em novas tragédias, com as mortes posteriores de
Euclides da Cunha Filho e do irmão de Dilermando, Dinorah de Assis.
Desagravo
Nas
últimas décadas, Dirce - que é a única filha do segundo casamento do
pai - tem lutado para tirar do nome do pai a alcunha de "assassino".
"O que eu mais quero, todo o meu empenho, é tirar essa palavra de sua biografia, que é tão pesada, tão feia", diz Dirce.
"Ele não é o assassino. Ele matou por legítima defesa. É só isso que eu gostaria de deixar definido."
Dirce
é escritora, poeta e artista plástica. A sala de seu apartamento é
povoada por suas pinturas e esculturas, além de um portarretrato do pai,
ainda moço.
"Ele usava barba para parecer mais velho com a Ana,
para não haver muita diferença de idade entre eles. Houve um amor muito
grande da parte dos dois, para enfrentar inclusive tudo que eles
enfrentaram vida afora, que não foi pouca brincadeira."
Por ocasião da Flip - e das homenagens a Euclides -, seu livro O Pai terá uma nova edição lançada nesta semana (Ateliê Editorial).
"Eu vinha escrevendo esse livro a vida inteira, aos
pouquinhos", afirma. "Eu sempre achei que eu tinha que defender o papai
de alguma maneira."
Na narrativa autobiográfica, Dirce conta a
história de Dilermando a partir de seus olhos de filha, desvelando a
tragédia assim como ela a foi descobrindo, aos poucos, na infância, em
uma casa cercada de segredos.
Na primeira infância, suas
lembranças são de um pai extremamente carinhoso, que a ensinou a
escrever em seu colo aos 4 anos, e que a levava para passear, para
museus.
Aos 11 anos, a frase que ouviu na escola impôs uma
ruptura ao universo que conhecia até então - revelando o segredo que
seus pais haviam conseguido ocultar:
"Ela não presta. O pai dela
matou um homem", disse sua colega. A frase lhe pareceu tão ousada, tão
despropositada, que só podia ser verdade.
'Acontecimento terrível da vida brasileira'
Euclides da Cunha foi aclamado como escritor após a publicação de Os Sertões, em 1902, sobre a Guerra de Canudos.
Fora
enviado como jornalista pelo O Estado de S. Paulo (à época, A província
de S. Paulo) para acompanhar o primeiro conflito armado da
recém-proclamada República, no arraial liderado pelo beato Antônio
Conselheiro, no interior da Bahia. No livro, Euclides narrou o confronto
entre os soldados e os sertanejos monarquistas, que acabaram dizimados
pelas tropas republicanas.
A obra lhe rendeu a consagração no
círculo intelectual brasileiro, ingressando na Academia Brasileira de
Letras e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
No prefácio de O Pai,
o crítico literário Antonio Candido descreve a morte do escritor como
"um dos acontecimentos mais terríveis da vida brasileira" no século
passado.
Sua morte completa 110 anos em agosto e já foi tema de livros, peças, uma ópera - Piedade, composta por João Guilherme Ripper - e da minissérie Desejo, da Rede Globo, que em 1990 estrelou Vera Fischer no papel de Ana, e Guilherme Fontes vivendo o jovem Dilermando.
A tragédia da Piedade
O
episódio ficou conhecido como "a tragédia de Piedade", em referência ao
bairro no subúrbio do Rio onde Dilermando vivia com seu irmão, Dinorah
de Assis - e onde Euclides apareceu de surpresa em um domingo. Era 15 de
agosto de 1909.
Ana não aparecia em casa desde sexta-feira. Euclides sabia do romance, e o casamento já passara por crises ferozes.
Segundo os autos do processo, reunidos no livro Crônica de uma tragédia inesquecível, organizado por Walnice Nogueira Galvão, Dinorah abriu a porta da casa, e Euclides entrou com uma mão no bolso.
Na
sala, sacou o revólver que pegara emprestado de um parente, dizendo que
precisava matar "um cachorro louco" que rondava sua casa.
Ana se
escondera na edícula da casa com seu filho caçula Luiz, o Lulu - o
segundo filho que teve com Dilermando, louro como o pai. Euclides se
referia à criança como "uma espiga de milho em meio a um cafezal", no
meio da família morena.
Do quarto, segundo relatou nos autos, Ana
ouviu Euclides entrar na casa gritando "corja de bandidos" e "vim para
matar ou morrer!". Em seguida, ouviu os tiros.
No livro Matar para não morrer: A morte de Euclides da Cunha e a noite sem fim de Dilermando de Assis (Objetiva, 2009), a historiadora Mary Del Priore resume os eventos que se sucederam:
Euclides
foi atrás de Dilermando no quarto, onde havia se fechado para vestir o
dólmã militar e receber o escritor composto. Entrou atirando, e atingiu
Dilermando na virilha e no peito.
Seu irmão, Dinorah, tentou
conter Euclides, mas levou dois tiros do escritor. Quando Dinorah se
virou para ir atrás de uma arma, Euclides o atingiu na espinha.
Euclides
voltou-se novamente para Dilermando, que nesse meio tempo alcançara sua
Smith and Wesson. No duelo que se seguiu, Euclides deu mais três tiros
em Dilermando, mas o jovem aspirante revidou com três tiros no escritor:
no ombro, no braço e a bala fatal - do lado direito do peito.
"Uma
hemorragia no pulmão fez o resto. Euclides caiu na porta da frente,
entre as escadas e o modesto jardim", descreve Del Priore.
Nos
autos do processo, Ana relatou "que depois disso ficou tudo em silêncio e
Dinorah veio abrir-lhe a porta que foi trancada por fora, dizendo:
'sinh'Aninha, estamos todos mortos, seu marido morreu, assim como
Dilermando e eu também vou morrer."
Dinorah e Dilermando sobreviveram. Já Euclides teve o corpo velado na Academia Brasileira de Letras.
'Doloroso drama de sangue'
"Hontem
à tarde, na cidade molhada de aguaceiros contínuos estalou como um
raio, na redação dos jornaes, uma notícia atrós: Euclydes da Cunha foi
assassinado!", noticiou o jornal Gazeta de Notícias no dia seguinte,
conforme a grafia da época. E continuou:
"Era possível prever
tudo, menos que Euclydes da Cunha, homem de costumes austeros, de vida
regularíssima, sem lutas e sem inimigos, cercado de admiração ao seu
formidável saber e ao seu excepcional talento, fosse assim assassinado."
O
tom de choque e perda irreparável reverberou pelos jornais da época,
trazendo manchetes como "O assassinato do ilustre escriptor" e "Um
doloroso drama de sangue".
De acordo com a historiadora Mary Del Priore, para
além da revolta com a morte de um dos grandes literatos do Brasil
naquela época, somou-se o julgamento - e a condenação pública - do
polêmico romance extraconjugal, e com 16 anos de diferença de idade,
entre Ana e Dilermando.
"Quando a imprensa, que estava se
multiplicando e tinha um papel importantíssimo, se abate sobre esse
casal, é para arrasar com essa mulher mais velha que se apaixonou por um
jovem mais moço, enquanto ele, com sua juventude e ingenuidade, é
retratado como um aproveitador", aponta a historiadora.
"O que a
gente vê em cena, e não está dito, é toda essa problemática da honra
masculina, que num país machista não atinge só as mulheres, mas atinge
os homens também, porque é exigido deles um papel ideal", diz Del
Priore. "Marido corneado imediatamente tem que reagir e tem que matar.
Então a gente vê aí encenado já uma primeira tragédia shakespeariana, em
que você já tem três vítimas."
'Segundo ato' da tragédia
Depois da morte de Euclides, Ana, viúva, se casou oficialmente com Dilermando, e o casal teve mais cinco filhos.
Sete anos depois, a tragédia da Piedade fez mais uma vítima.
Em
4 de julho de 1916, Euclides da Cunha Filho, conhecido como Quidinho,
decidiu vingar o pai. Aos 21 anos, o aspirante da Marinha foi atrás de
Dilermando em um cartório, onde o encontrou debruçado sobre um processo.
Atirou em Dilermando pelas costas, dando início "a um
emocionante e verdadeiro duelo" ao fim do qual "os dois contendores
tombam ensanguentados no chão", conforme descreveu o jornal "A noite".
Euclides
Filho acertou quatro tiros em Dilermando, que andava armado, conseguiu
alcançar sua arma e revidou, matando Euclides Filho - seu enteado, um
dos três filhos de Ana com Euclides.
Apesar de gravemente ferido, Dilermando novamente sobreviveu. E novamente foi condenado pela imprensa.
O
jornal "O Paiz" noticiou: "Assassino do pai, matou também o filho", no
"2º acto de uma tragédia emocionante", cometido por ninguém menos que
Dilermando - "o nome de criminoso jamais esquecido pelo povo".
O escrutínio público sobre Ana não foi mais
generoso, atribuindo-lhe a pecha de mãe adúltera, mãe culpada, cúmplice
do padrasto assassino.
A vítima de quem 'ninguém lembra'
Irmão
mais moço de Dilermando, Dinorah de Assis era aspirante da Marinha e
trilhava uma promissora carreira no futebol - ou "foot-ball", como o
esporte recém-importado da Inglaterra era tratado no noticiário.
Mas a bala que ficou cravada na espinha após os tiros de Euclides foram lhe tirando os movimentos pouco a pouco.
No
ano seguinte à tragédia da Piedade, ainda conseguiu competir pelo
Botafogo, e se tornou campeão carioca - no título de 1910 que deu ao
time a alcunha de "glorioso".
Dinorah acabou ficando paralítico e
enfrentou a depressão, o alcoolismo e a mendicância. Após outras
tentativas, conseguiu se suicidar em 1921.
"Ele (Euclides)
praticamente matou meu tio, que não tinha nada com a história", diz
Dirce. "Ele ficou um trapo humano e se suicidou, se jogou no rio Guaíba e
se afogou aos 32 anos. Essa é uma historinha que ninguém conta."
Segundo casamento
Depois
da morte de Quidinho, Ana e Dilermando ainda ficaram juntos cerca de
dez anos. Separaram-se quando ela tinha 50 anos, e Dilermando se
apaixonou por uma mulher mais jovem, Maria Antonieta de Araújo Jorge, a
Marieta.
A união foi rejeitada pela família de Marieta,
inicialmente mantida em segredo e cercada de vergonha. "A família toda
era muito dura com ela", conta Dirce. "Ficar com o Dilermando -
imagina!" Nos primeiros anos morando juntos, a mãe mal saía de casa, e
nunca o fazia acompanhada de Dilermando. Não queriam que soubessem que
estavam juntos.
Dirce de Assis Cavalcanti é a filha única desta
segunda união. "Eles não queriam ter filhos. A minha mãe não queria. Fez
uns sete ou oito abortos. Quando engravidou de novo, o médico não
deixou que ela fizesse outro, e eu nasci por isso. Estou aqui por
acaso", diz. A mãe vivia chorando, lembra.
Já menina, ela
percebeu que sua casa "não era como a das outras pessoas". Nunca
recebiam visitas. O pai se fechava no escritório para atender a
telefonemas. "Sempre havia aquele segredo, aquele mistério, e ninguém me
dizia nada."
Até então, Dirce tinha paixão pelo pai. Quando ele
chegava para buscá-la no internato, orgulhava-se por ser mais forte e
mais alto que os pais das outras meninas.
Mas tudo mudou depois da frase que ouviu aos 11 anos. "Ela não presta. O pai dela matou um homem".
Aos
13 anos, quando Dilermando esqueceu a chave de sua escrivaninha em
casa, Dirce destrancou o armário e descobriu pilhas de pastas com
documentos e recortes. "Os jornais diziam 'o assassino de fulano de
tal', e a foto do papai". Só depois foi tempo foi entender quem era o
Euclides da Cunha", conta.
À medida que foi descobrindo o seu segredo, a menina se fechou.
"A vida inteira eu fui saber de uma maneira tremendamente dolorosa", lembra Dirce.
"Fui
ficando muito desligada do meu pai. Não porque ele tivesse feito
aquilo, não porque tivesse se defendido, como se defendeu. Mas porque
nunca tinha me contado", afirma. "Hoje sinto muita culpa."
Marieta
e Dilermando só se casaram oficialmente no fim da vida, em 1951, quando
ele já parecia à beira da morte. Ana, com quem era casado no papel até
então, falecera meses antes.
"Foi o casamento mais triste que eu
já vi", diz Dirce, lembrando que, enquanto a mãe assinou a certidão, o
pai, acamado, apenas pôde registrar sua impressão digital no documento.
Dirce
conta que Dilermando "foi sendo promovido a duras penas" na carreira
militar, "sempre o último de sua turma". No fim da vida, conseguiu
chegar a general.
Em 1951, o ano de sua morte, Dilermando publicou A Tragédia da Piedade - Mentiras e calúnias da 'Vida dramática de Euclides da Cunha'.
O
livro é seu manifesto final de autodefesa, analisando as provas
periciais das mortes de Euclides pai e Euclides Filho e trazendo a
público a sua versão dos fatos - a começar por seu "erro dos 17 anos",
quando se apaixonou por uma mulher casada.
"A convivência
acarretando a intimidade; a falta de experiência ou malícia permitindo a
aproximação mais íntima (...); tudo concorreu para o despertar de novos
sentimentos", descreveu Dilermando sobre sua aproximação de Ana Emília
Ribeiro da Cunha.
"E assim, nessa ebriez incontível,
imperceptivelmente se consumou o meu crime. Porque é só onde vejo a
transgressão à lei: no ter amado, aos 17 anos, uma mulher casada cujo
marido não conhecia e se achava ausente, em paragens longínquas, sem ser
lembrado sequer por inanimada fotografia."
Euclides na Flip
Apesar
de o foco da Flip ser sobre a obra literária de Euclides, o medo de que
Dilermando apareça nos círculos de debate como "o assassino de
Euclides" tem preocupado Dirce.
O medo de que Dilermando apareça
nos círculos de debate na Flip, em Paraty, como "o assassino de
Euclides", tem preocupado Dirce.
"Eu gostaria de ir, mas já estou
muito velha. E também, como vou saber onde estarão falando mal dele
para ir defendê-lo?", pondera.
"Eu realmente me emociono toda vez que falo dessa história. Fico muito angustiada".
Ela acredita, que aos poucos, a compreensão sobre a morte de Euclides e a história de seu pai estejam mudando.
"Em determinados círculos, as pessoas já não falam no assassino, mas no homem que matou. E aí vai uma grande diferença."
Para a historiadora Mary Del Priore, a história da morte do Euclides da Cunha deve ser compreendida sob nova luz.
"A
desconstrução do Euclides não significa a destruição do Euclides, mas
uma compreensão nova de um ator histórico importante, mas que esteve
enredado em um drama terrível, cujas história tem que ser revista. E
nela o Dilermando foi vítima como foi vítima o Euclides, como foi vítima
o Dinorah e como foi vítima o Euclides Filho", considera a
historiadora.
"Nos dois casos, o papai foi atacado. E mesmo cheio
de balas ele conseguiu reagir", diz Dirce. "Só que naquela época, a
honra dos maridos era lavada com sangue. E assim foi feito por parte do
Euclides da Cunha", diz Dirce.
"Ele sempre dizia que ele preferia que tivesse ele morrido", conta Dirce. "A vida toda ele teve que pagar."(BBC News Brasil)
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