segunda-feira, 1 de julho de 2019

Obscurantismo

Terraplanismo, negação das mudanças climáticas, movimentos antivacina. Entenda por que, apesar de tantos avanços na ciência, vivemos numa época tão propícia à ignorância.

O aquecimento global é uma farsa, de acordo com o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Em 30 de maio, ele declarou que o aumento registrado na temperatura média da Terra seria uma consequência do fato de que ruas, estacionamentos e outras superfícies asfaltadas foram construídos nas redondezas de estações meteorológicas que antes ficavam em áreas de vegetação nativa, mais frescas. Como o asfalto absorve mais calor, os termômetros estariam apenas registrando a acentuada urbanização que ocorreu desde o início do século 20.

A hipótese de Araújo foi refutada em 2011 pela Universidade da Califórnia em Berkeley. De 37 mil estações meteorológicas analisadas, 16 mil ficam em zonas perfeitamente rurais. E os dados de dois terços delas – rurais ou urbanas – indicam aumento de temperatura. Para não falar nas medições feitas por satélites, que estão em órbita, longe do asfalto.
Infelizmente, não são só membros do governo que preferem ignorar evidências científicas: os eleitores também. 46% dos brasileiros não concordam com a afirmação de que a espécie humana compartilha um ancestral comum com os chimpanzés. 89% defendem que o criacionismo seja ensinado nas escolas.1
Uma pesquisa indicou que 4,5% dos pais se recusam a vacinar suas crianças, e outros 16,5% têm receio, ou não acham que a imunização tenha qualquer importância para a saúde de seus filhos. Entre os jovens, esse número sobe para 23%. O SUS oferece terapias sem eficácia comprovada. Picaretas publicam livros de autoajuda que distorcem a física quântica para fins motivacionais. Água sanitária é vendida como cura para o autismo.
Tal crise de confiança na ciência não corresponde ao quanto nossas vidas dependem dela. Cada vez que você toma um analgésico, pede um Uber ou liga a TV, você está se beneficiando do trabalho de centenas de cientistas (o GPS só existe por causa da Teoria da Relatividade de Einstein). Mesmo assim, extremistas dos dois lados do espectro político negam abertamente as evidências científicas sempre que elas não correspondem às suas visões de mundo.
As consequências dessa atitude são velhas conhecidas: em 1984, de George Orwell, o protagonista é torturado por agentes de um regime totalitário até se convencer de que 2 + 2 é igual a 5. Os exemplos não vêm só da ficção.
Na União Soviética da década de 1930, o camponês Trofim Lysenko, alçado a guru científico de Stalin, propôs a hipótese de que sementes aprenderiam a lidar com o frio se expostas a ele (de maneira análoga à ideia atribuída a Lamarck, de que o pescoço da girafa cresce porque ela se estica para alcançar árvores altas). Ele negava a genética e a evolução por seleção natural.
Por influência de Lysenko, Stalin declarou a teoria de Darwin ilegal. Na prática, sua doutrina contribuiu para uma agricultura ineficaz, que prolongou surtos de fome na URSS e na China. Fica a lição: basear políticas públicas em impressões pessoais, e não em ciência de verdade, é um jeito eficaz de jogar dinheiro no lixo, reforçar preconceitos, desacelerar a economia e piorar a qualidade de vida.
 

Em 1948, Stalin declarou a biologia evolutiva e a genética ilegais na URSS.

Como navegar, então por mundo em que as impressões falam mais altos que os fatos? Fazer uma pesquisa no Google é como adentrar uma sala com um milhão de vozes urrando versões contraditórias sobre um fato. Em meio à bagunça, é natural que você ouça só as vozes que reforçam suas pré-concepções: é o viés de confirmação. Quando somos bombardeados por contradições, ficamos anestesiados ao valor da verdade.
Isso não é só divagação teórica: pode ser verificado na prática. Hélio Schwartsman destacou na Folha de S. Paulo que, em 1998, 47% dos eleitores republicanos e 46% dos democratas concordavam com a afirmação de que os efeitos do aquecimento global já se faziam sentir. Em 2018, os números eram 34% para os republicanos e 82% para os democratas. O alinhamento político passou a importar mais que o dado bruto. 
“As pessoas sentem que o ataque às suas convicções é pessoal, que sua identidade está sob ameaça”, afirma Michael P. Lynch, filósofo da Universidade de Connecticut e autor do livro In Praise of Reason (“Um elogio à razão”, sem tradução no Brasil).
O jeito mais fácil de lidar com o ruído ensurdecedor é se abraçar às suas crenças e não soltá-las mais. E a internet é ótima em personalizar nossa experiência: seus algoritmos nos enterra em bolhas onde todos pregam para os convertidos. A ciência é a melhor ferramenta para combater esse mar de incerteza, e é imprescindível entender por quê.
O método científico se baseia na noção de falseabilidade, introduzida pelo filósofo Karl Popper em 1934. Ela é simples: você começa levantando uma hipótese – por exemplo, a de que todo esquilo tem rabo. Essa hipótese só pode ser considerada válida cientificamente se for possível refutá-la – isto é, se for possível encontrar um esquilo que não tenha rabo. Sabemos que isso é possível; basta procurar um.
Se um número razoável de buscas, feitas por pesquisadores diferentes em lugares diferentes, tentar encontrar um esquilo sem rabo e falhar, a hipótese de que todo esquilo tem rabo ganhará força. Perceba que é impossível provar algo definitivamente. Só dá para reduzir a incerteza sobre um determinado assunto. Você pode encontrar dezenas de esquilos com rabo: nenhum deles é capaz de provar, sozinho, que você está certo. Mas se você encontrar um único esquilo sem rabo, ele será suficiente para provar que você está errado. Essa é uma espécie de mão invisível da ciência. Ela regula a si própria.
Seria inocência defender que a ciência está imune à má-fé: o movimento eugênico e o nazismo, assim como o lamarckismo de Lysenko na URSS, provam que cientistas com motivação política são capazes de manipular dados para atingir conclusões estabelecidas de antemão. A ciência é uma atividade humana, que sofre de imperfeições humanas.
Mesmo assim, ela ainda é o método de busca do conhecimento mais capaz de se atualizar, admitir os próprios equívocos e seguir em frente. A frase mais famosa de Winston Churchill – “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras” – se aplica igualmente bem ao método científico.
Nas próximas páginas, vamos apresentar a história e o presente dos principais movimentos anticientíficos atuais – e entender por que é essencial basear políticas públicas na razão.
1. Número extraído do livro A Goleada de Darwin, de Sandro de Souza (Record, 2009).


Homeopatia


O médico alemão Samuel Hanehmann criou a homeopatia no início do século 19 como uma alternativa razoável à medicina convencional da época, cuja terapia mais comum era a sangria: abrir cortes nos doentes na esperança de que a hemorragia reestabelecesse o equilíbrio aos fluidos corporais. Tal insanidade era tida como cura para qualquer coisa, de gripe a convulsões, e foi praxe na Europa por 2 mil anos.
Hanehmann baseou sua tese em dois princípios. O primeiro é o de que semelhantes curam semelhantes: a crença de que o remédio ideal para um sintoma é alguma substância que cause esse sintoma. Por exemplo: se você tem rinite alérgica, a ingestão de uma pequena quantidade de cebola supostamente faria seus olhos pararem de lacrimejar. O antraz, toxina produzida pela bactéria Bacillus anthracis que causa feridas na pele, seria capaz de curar espinhas, furúnculos etc. Há até um caso documentado de médico que receitou pedaços do muro de Berlim para uma mulher depressiva – afinal, é inegável que a construção deprimiu os berlinenses.
O segundo princípio é o da potenciação, isto é: a substância é diluída em água, álcool ou açúcar. Muitas e muitas vezes. A diluição mais comum é a chamada C30, o que significa que a substância ativa foi diluída 30 vezes na proporção de 100 para 1. “Para conter uma única molécula de substância ativa, a pílula homeopática nessa diluição teria que ter o diâmetro equivalente à distância entre o Sol e a Terra [149,6 milhões de quilômetros]”, diz Edzard Ernst, professor emérito da Universidade de Exeter, na Inglaterra. “Ou seja: os remédios homeopáticos mais comuns não contêm uma única molécula de princípio ativo.”  Click aqui e continue lendo no Super Interessante.

 

 


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