Oito
homens, três mulheres e um menino estavam na aeronave, engolida -
acredita-se - pelas águas do Estreito de Bass, que fica entre a Tasmânia
e a Austrália continental.
Os destroços do avião nunca foram encontrados.
Uma
das pessoas a bordo era o missionário anglicano Hubert Warren, de 33
anos, que estava viajando para sua nova paróquia em Enfield, Sydney. Sua
esposa Ellie e seus filhos ficaram para trás, com a intenção de seguir
de barco.
O último presente que o reverendo deu ao filho de oito anos, David, foi um aparelho de rádio que o menino adorava.
David
Warren morava em um internato em Launceston, na Tasmânia, e gostava de
estudar o aparelho após as aulas - aos poucos, foi entendendo como ele
funcionava. Ele cobrava dos amigos para que pudessem ouvir partidas de
críquete; mas, em pouco tempo, estava vendendo rádios, que ele mesmo
montava.
O jovem David era carismático e de boa oratória. Sua
família, que era profundamente religiosa, queria que ele se tornasse um
pregador evangélico.
Mas não foi o que aconteceu. O presente do reverendo Hubert acabou criando um caso de amor de David com a ciência.
E isso salvaria muitas vidas.
Aos
vinte e poucos anos, David Warren já tinha diploma de ciências na
Universidade de Sydney, de educação na Universidade de Melbourne e um
doutorado em química no Imperial College, em Londres.
Sua
especialidade era a ciência de foguetes, e ele foi trabalhar como
pesquisador para os Laboratórios de Pesquisa Aeronáutica, braço do
Departamento de Defesa da Austrália que se concentrava em aviação.
Em
1953, o departamento o emprestou a um painel de especialistas que
tentava descobrir por que o britânico Havilland Comet, o primeiro avião
comercial a jato do mundo, vivia caindo.
Warren achava que a causa
poderia estar nos tanques de combustível, mas havia dezenas de outras
possibilidades - e nada além de morte e destroços para comprová-las. O
painel se sentou para discutir o que se sabia.
"As pessoas estavam
discutindo sobre o treinamento da equipe e sobre os erros dos pilotos,
um bando de coisas sobre as quais eu não sabia nada", lembrou Warren
mais de 50 anos depois.
"De repente, comecei a lembrar de algo que
tinha visto na semana anterior, na primeira feira de negócios
pós-guerra de Sydney, o primeiro gravador de bolso, o miniphon. Um
dispositivo alemão. Não havia nada antes parecido."
O miniphon era
apresentado como um aparelho gravador em que homens de negócios
pudessem ditar instruções ou mesmo cartas, sentados em suas mesas (ou em
trens e aviões), para que estas fossem digitadas depois por suas
secretárias. Warren, que gostava de música e tocava clarinete, queria
ter um miniphon apenas para poder gravar - e ouvir - canções do músico
de jazz Woody Herman.
No entanto, quando um de seus colegas
cientistas sugeriu que o último avião a cair poderia ter sido
sequestrado, ele teve um estalo.
As chances de que um gravador
estivesse a bordo - e sobrevivesse aos destroços - eram basicamente
nulas. Mas e se todos os aviões no céu tivessem um pequeno gravador na
cabine do piloto? Se fosse resistente o suficiente, poderia ajudar a
eliminar várias dúvidas dos investigadores de acidentes, porque haveria
registros de áudio gravados até o momento do acidente. No mínimo, eles
saberiam o que os pilotos haviam dito e ouvido.
A ideia o fascinou. De volta ao laboratório, ele correu para contar ao seu chefe.
Infelizmente,
seu superior não compartilhou de seu entusiasmo. Warren contou que lhe
disseram: "Não tem nada a ver com química ou combustível. Você é um
químico. Dê isso ao grupo de instrumentos e continue testando tanques de
combustível".
'Se falar disso vou ter que te demitir'
Warren
sabia que sua ideia de um gravador de cabine era boa. Também sabia que,
sem apoio oficial, havia pouco que pudesse fazer sobre isso; mas ele
não conseguia tirar a ideia da cabeça.
Quando seu chefe foi
promovido, Warren voltou a sugerir sua inovação. Seu novo superior ficou
intrigado, e também o superintendente-chefe dos laboratórios, Laurie
Coombes. Eles o encorajaram a continuar trabalhando no projeto - mas
discretamente. Como não era um empreendimento aprovado pelo governo ou
uma arma que pudesse ajudar a vencer guerras, não havia com justificar o
gasto de tempo ou dinheiro do laboratório nesse projeto.
Warren
disse que o superintendente-chefe o advertiu: "Se eu vir você
conversando com alguém, inclusive comigo, sobre esse assunto, terei que
despedir você".
Foi um pensamento preocupante para um jovem com uma esposa e dois filhos.
Mas
o chefe o apoiou a comprar um dos preciosos novos gravadores de
ditados, alegando que seria "um instrumento necessário para o
laboratório..."
Encorajado, Warren redigiu sua ideia em um
relatório, intitulado "Um dispositivo para auxiliar na investigação de
acidentes aéreos", e o divulgou por toda a indústria.
O sindicato
dos pilotos respondeu com fúria, dizendo que o gravador seria um
dispositivo para espioná-los, e insistiu que "nenhum avião decolaria na
Austrália com o Big Brother escutando".
Essa foi uma das críticas mais leves.
As
autoridades de aviação civil da Austrália declararam não ver
"significado" na ideia, e a Força Aérea disse temer que o gravador
"produzisse mais palavrões do que explicações".
Warren chegou a cogitar desistir da ideia.
Mas
seu filho mais velho, Peter, diz que seu pai era teimoso, e que o seu
não conformismo era parte determinante de sua visão de mundo.
"Uma
vez ele nos levou para esquiar", lembra o filho, "mas ele esquiou com
luvas de lavar louça, porque não queria pagar 30 dólares por um par de
luvas de esqui. Ele não tinha nem um pouco de medo. Ele não era do tipo
que ia com a manada".
Foi com esse espírito que levou Warren a
sua garagem: para montar, ele mesmo, um protótipo, usando as antigas
peças de seu aparelho de rádio. Ele decidiu que essa seria a única
maneira de superar a zombaria e a suspeita de seus críticos.
Seria a primeira "caixa-preta" da aviação.
'Botem esse rapaz no próximo avião!'
Um
dia, em 1958, quando o pequeno gravador de voo já estava pronto, o
laboratório recebeu um visitante incomum. Coombes,
superintendente-chefe, apareceu com um amigo da Inglaterra.
"Dave!" ele disse: "Conte a ele o que você está fazendo!"
Warren
explicou: era seu primeiro protótipo para armazenar quatro horas de
vozes de pilotos, fazer leituras de instrumentos e apagar
automaticamente registros antigos, de modo a ser reutilizável.
Houve
uma pausa, e então o visitante disse: "Coombes, cara, é uma boa ideia.
Bote o rapaz no próximo voo e vamos mostrar esse aparelho em Londres".
Dito
e feito. Esse amigo de Coombes era Robert Hardingham, o comandante do
British Air Registration Board, órgão de aviação do governo, e
ex-vice-marechal da Força Aérea Real.
Nas palavras de Warren: "Era um herói. Se te oferecia um lugar no avião, você tinha que aceitar".
Algumas
semanas depois, Warren estava em um avião com destino à Inglaterra -
com instruções estritas para não dizer ao Departamento de Defesa da
Austrália o que realmente estava fazendo lá, porque "alguém iria
reclamar".
Em uma ironia quase inacreditável, o avião perdeu um motor quando voava sobre o Mediterrâneo.
Warren
relembra: "Eu disse: 'Pessoal, parece que um motor parou de funcionar -
alguém quer voltar?' Mas nós tínhamos vindo da Tunísia e fazia 45 graus
lá durante a noite. Nós não queríamos voltar para aquele inferno. "
Eles decidiram que dava para continuar.
Ele
gravou o resto do voo, pensando que, mesmo que morresse naquele avião
capenga, "pelo menos eu teria provado que os desgraçados (que zombaram
da ideia) estavam errados!".
"Mas, nós não morremos- acabamos pousando em segurança ..."
Na Inglaterra, Warren apresentou o aparelho às autoridades e a alguns fabricantes de instrumentos de aviação.
Os
ingleses adoraram. A BBC fez programas de rádio e TV sobre ele, e a
autoridade britânica de aviação civil passou a se empenhar em tornar o
dispositivo obrigatório em aeronaves civis. Uma empresa abordou o
laboratório de Dave sobre os direitos e iniciou a produção.
Embora
o dispositivo sempre tenha sido chamado de "caixa-preta", os primeiros
exemplares eram laranja, pois desse jeito seriam mais fáceis de
encontrar depois de um acidente - e assim permanecem até hoje.
Peter Warren acredita que o nome surgiu de uma entrevista que seu pai deu à BBC em 1958.
"Um jornalista se referia ao objeto como uma 'caixa-preta'. É uma palavra genérica da engenharia eletrônica e o nome pegou."
Em 1960, a Austrália se tornou o primeiro país a
tornar os gravadores de voz da cabine obrigatórios, depois que um
acidente de avião inexplicável em Queensland matou 29 pessoas. A decisão
veio de uma investigação judicial e levou mais três anos para se tornar
lei.
Hoje, as caixas-pretas são à prova de fogo, à prova de água e envoltas em aço. E são obrigatórias em todos os voos comerciais.
É
impossível dizer quantas pessoas devem suas vidas aos dados capturados
na caixa-preta de um avião que falhou. Das falhas expostas vieram
inovações de segurança.
'Sou um sortudo'
David Warren trabalhou no laboratório de aeronáutica
australiano até sua aposentadoria, em 1983, tornando-se seu principal
cientista de pesquisa. Ele morreu em 19 de julho de 2010, aos 85 anos de
idade.
Por mais de 50 anos, seu trabalho pioneiro com a
caixa-preta quase não foi reconhecido. Finalmente, em 1999, ele foi
premiado com a Medalha do Instituto de Energia da Austrália, e, em 2002,
virou oficial da Ordem da Austrália, uma honraria do governo, por
serviços prestados à indústria da aviação.
Perguntado por que
demorou tanto para que fosse reconhecido, seu filho, Peter Warren, culpa
"uma mentalidade colonial dos anos 50, que achava que nada de bom
poderia sair deste país, e tudo de bom seria inventado no Reino Unido,
na Alemanha ou nos Estados Unidos".
O sigilo em torno das atividades do laboratório, que agora é mais transparente, foi outro fator provável.
Warren
chegou a ver um Airbus da Qantas ganhar seu nome, em 2008. Jenny
Warren, sua filha, diz que há anos tenta conseguir um lugar nesse avião.
David Warren nunca viu um centavo em royalties da caixa-preta.
Ele era frequentemente perguntado se isso o fazia
sentir mal. Peter diz que sua resposta padrão era: "Sim, o governo ficou
com os créditos do que eu fiz. Mas eles também não me cobraram pelas
outras centenas de ideias que não funcionaram".
Os filhos de David herdaram seu senso de humor.
A pedido de Peter, o aviso de morte de seu pai, em 2010, incluía seu bordão pessoal: "Eu sou um baita de um sortudo".
A pedido de Jenny, ele foi enterrado em um caixão rotulado: "Inventor da cai
xa-preta: não abra".
Eles pensam em seu pai quando voam?
Sua filha responde simplesmente: "Sempre".
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