Criar filhos é
remar o rio ao avesso em que invertemos o tempo e vamos mimetizando os
papéis, durante uma longa mutação, até a derradeira de todas. Não são
apenas as memórias, a apoteose de criador, o amor absoluto, que te
consagra e realiza. É a esperança de nossa edição melhorada sem as
fragilidades e as falhas que tivemos. Somos senhores da realização de
lhes dar régua, compasso, princípios, para viverem, embora, por vezes,
esqueçamos que os filhos nos decifram em silêncio e nos criam, mas à sua
própria imagem e leitura.
Adivinhássemos o futuro,
desfrutaríamos mais desta relação, desse mito da fé mágica, e
renunciaríamos mais as exigências de fora para nos abastecermos dos seus
abraços e descobertas. E, dormiríamos, nós todos, em histórias e
fantasias intermináveis, apesar das dúvidas para achar a medida exata
entre a firmeza que educa, a recusa da autoridade que estraga, e o amor
que humaniza.
Criar os filhos, doer suas dores, rir de sua
inocência, perder o sono na sua febre ou ausência, caminhar de mãos
dadas numa praça ou num sonho, nos eterniza. Faremos escolhas por eles-
nem sempre as melhores-, muitas vezes com intenções que temos com nós
mesmos, esquecendo que a vida só se faz para seu dono. Cruzaremos a
longeva e barulhenta infância e adolescência -o tempo mais doce do
tempo-, às vezes sem perceber a progressiva e inexorável redução da
dependência conosco. Acostumamo-nos com o barulho de suas vozes,
agenda, lições, ocupação da casa, cama, espaços da vida, achando que
será para sempre.
É que, embora não acreditemos e ninguém nos
prove o contrário, filhos crescem. E partem. E farão de sua partida um
remoer sem fim, deixando em seus quartos um troféu das competições, um
som, um aroma de milagre, um diário esquecido, um vestido abandonado por
ser infantil, em um vazio que parece nunca acabar de ser olhado.
Um dia seu filho mais velho irá embora, para a faculdade, e você
sentirá que sua invenção de homem tomou rumo próprio e se lembrará do
dia em que também partiu e pensará em infinitos conselhos que acabará
não dando, esquecidos no abraço. Depois sua filha fará o mesmo gesto e
sua ausência será chorada às escondidas, porque apartar, disse-me meu
pai, nessa quarta, ao vê-lo no cemitério, precisa ser feito. E, então,
rezamos as rezas dos rezadores, por eles.
Sem o ofício do
cotidiano os horários se embrulharão, a casa silenciosa se ressentirá do
revés, como uma árvore sem vento, sem folhas. Que não abriga, nem
sombreia. E, nesta reinvenção do ninho vazio não teremos a bênção ao
dormir. Ela que nos protegia, e não a eles. E os medos serão só nossos,
sem a redenção primitiva que suas presenças nas manhãs. E não importa,
se for a primeira ou a centésima partida, pois, todas reinauguram uma
mesma falta, uma teia que nunca se fecha em definitivo.
Estaremos juntos nas férias, viajaremos, faremos muitas refeições em
família, e, um dia, os netos atiçarão a árvore, mas eu sei - eu também
não vim-, que filhos não voltam para casa.
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