domingo, 23 de maio de 2021

A caravela de Petu

Agora era “bistêmio” (abstêmio), goró nem pensar! Também ao longo dos seus 48 anos de jornada, já havia tomado todas, esgotando, literalmente, a cota a que tinha direito nessa encadernação  (encarnação) como dizia o saudoso filosofo Edson Fialho.  Bebida agora só “quisuque” ou suco de laranja. Orgulhava-se o bom Petrúcio, para desespero dos amigos de copo, que culpavam uma famosa radialista com o seu “Sociedade Esclarece” pela doença do compadre Petu (Petrúcio). É que ele de tanto ouvir conselhos da radialista, numa sexta-feira em que não pode sair de casa, pois consertava alguns moveis, sob a ferrenha “supervisão” de dona Clara, tomou a inesperada decisão de parar de beber. “Faz mal” dizia convicto aos surpreendidos amigos e ia suportando heroicamente à falta da danada da  branquinha.

Mas a mídia é mesmo quem manda. Estava lá na televisão a festança em Porto Seguro, pelos 500 anos do Brasil. Tinha até a réplica da uma caravela que custou uma pequena fortuna para ser construída. Juntou então alguns caixões e restos de madeira  e caiu no trabalho no quintal da casa onde operou durante  a  manhã inteira, sem um minuto de folga. Considerado ótimo marceneiro, principalmente quando não estava em aguas, na parte da tarde entrou, triunfante, na venda de Zé da  Vaca, com  sua réplica, em tamanho menor,  da caravela de Cabral, pomposamente colocada em exposição sobre uma mesa.

Zé da Vaca até que gostou porque a frequência do bar logo aumentou com muita gente querendo ver aquela obra de arte de Petu que, presunçoso, falava da viagem marítima entre Portugal e  Brasil, baseado  no que ouvira do filho Petrucinho, dedicado aluno de uma escola no Sobradinho. Com os detalhes na cabeça daquela empolgante viagem, ele falava de Pedro Alvares Cabral, das três caravelas, dos 500 anos da descoberta,  de Coroa Vermelha, colocando tudo aquilo em alto nível para a surpresa dos “pés de cana” . Enfim Petu era erudito e ninguém sabia. Merecia estar na Academia de Letras!

No primeiro brinde a histórica viagem, Petrúcio resistiu bravamente. Fraquejou na terceira e na quarta se entregou “em homenagem aos heróis!”. E em inflamado discurso, garantiu “se não fosse Pedro Alves Cabral e seus corajosos companheiros, não estaríamos aqui, neste momento, neste nobre estabelecimento, do nobre Zé da Vaca, brindando esta data histórica!” e sob aplausos, lágrimas abundando-lhe os olhos, arrancou a tampa de  mais uma legitima Sapupara do Ceará.

A “viagem” durou três dias de água duríssima e só terminou por volta das 17 horas (5 horas) de domingo porque Godinho, um recruta nessa matéria de navegação, portanto ainda não afeito “às longas viagens marítimas” e ao “balanço do mar” caiu duro, semelhante ao pão produzido na padaria de Emídio Bacamarte.

Deu ambulância (se fosse hoje seria Samu), corre-corre, pronto socorro. Passando do moreno claro para o roxo, Godinho quase batia as botas, não fosse a presteza do dr. Jair que, habilitado em Direito, meteu-lhe goela abaixo uma poção mágica, ou foi porção mesmo, porque há que diga que foi boa parte de uma Sapupara. Vomitou, suou, trocou de pernas e capotou, em estado agitado, sonhando que estava em Guaibin, vendo índios nus, que queriam sacrifica-lo, num espeto, como se ele fosse uma gorda tanajura.

Encerrada prematuramente, no terceiro dia, essa “histórica viagem” (Brasil/Portugal) na bodega de Zé da Vaca, a caravela foi recolhida e logo transformada em brinquedo da molecada do bairro, ao tempo em que, reconhecendo que o melhor mesmo seria voltar a ser “bistêmio”, foi o que fez Petu, arrastando com ele velhos e novos tripulantes. “Esse negócio de viajar em alto mar à base de Sapupara não dá. Bom mesmo é o “quisuque”, sentenciou convencido Petu, para a incontida alegria de dona Clara, que há muito tempo esperava esse tipo de declaração e que só veio depois da longa viagem na caravela!

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