segunda-feira, 23 de junho de 2025

Segunda é dia de CRÔNICA: Meu ancestral

 

Já gastamos cátedras e uma floresta de papel tentando responder qual a razão para a vida existir. As respostas continuam a do primeiro sapiens filosófico que a beira do fogo rascunhou na pedra da caverna suas impressões- ele, dissidente da caça ao javali e do pega, mata e come da savana vasta e insana. É como perguntar se a água teria sentido se não servisse para beber, tomar banho e gerar contas públicas. Ou se o céu seria menos céu se amantes não se dessem nus sob seu manto, poemas não contassem sua beleza e não abrigasse aquela estrela cadente em que pedi uma vez o amor.

Não há nenhuma razão especial para a vida em sua origem. É inútil perguntar. Por mais que vivamos com propósito, somos só mais do mesmo que já existia: cobras venenosas e borboletas sutis. Leões e hienas. Primatas e sapiens. Aliás, desses aí, há boatos de bastidores e histórias mal explicadas de como a coisa rolou nas raves de ervas e carne assada que levou o cérebro a se desenvolver- em quase toda espécie.

Não nego, no entanto, que tenho curiosidade por aquele- ou aquela, sabe-se lá se mulher já falava mais naquele tempo- que sofreu a maior solidão da espécie humana. A solidão da fala inicial, que determinou o ocaso do grunhido, do porrete e puxada de cabelo na comunicação ancestral. De quem nomeou rio de rio, pedra de pedra, gostosa de gostosa. A solidão de quem, com um arrepio, descobriu que som era palavra, que palavra nomeava coisa. Que o neurônio de um hemisfério podia mandar um recado para o outro, contando a última fofoca sobre o fato de neandertais e sapiens andarem traindo a espécie no escurinho das cavernas, nas fronteiras de suas tribos.

O desespero desse solitário que podendo conversar- ainda que assuntos escassos--não tinha a quem contar que falava. Um poeta marginal, um humano- ou quase- deslocado, com receio de ser cancelado e deixado de fora do bando, sujeito a se tornar vítima dos predadores como em qualquer periferia soteropolitana atual.

A solidão inaugural, primordial, impossível de ser saciada. Não sei como a segunda criatura foi atiçada pela mesma fagulha elétrica- sei lá se raio cai duas vezes no mesmo lugar- para finalmente poderem tomar um chá de raízes ao cair da tarde se perguntado de onde vieram, como chegaram ali, qual o sentido para a vida.

Eu o entendo. Tem dias que sou apenas meu ancestral.

 𝗖𝗲𝘀𝗮𝗿 𝗢𝗹𝗶𝘃𝗲𝗶𝗿𝗮 - Tabaréu, feirense, médico, professor, apaixonado por palavras, pessoas e a vida. Sou de mato, vinhos, cafés, pratos, prosas - falada e escrita. Essa tem sido minha receita.

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