Paixões irrefreáveis
Para
início da conversa, melhor deixar ao léu
aflições atinentes aos ‘mimos da senilidade’, parceiros
da maioria dos octogenários. Em paralelo - embora pareça indiscrição
ou cheire a mofo - fruo renovado prazer em tratar de certas convivências,
intensas, insistentes, incólumes, malgrado o avançar dos anos.
Isso
posto, iniciemos.
Mantenho por elas, paixões antigas, amor duradouro e irrefreável. Em particular pelas que se deixam dominar e atendem meus desejos, sem serem precisos retoques ou avivamentos. São o que são.
As
de estirpes nobres, nomes afamados, vestidas de dourado ou não, não nasceram
para meus afagos. Valeram-me, quando as mantive, para efêmeros prazeres -
estares de duração equivalente ao tempo de uma simples assinatura - ou para
açodar o invejoso deleite de olhares ao me verem na companhia das ditas. Elas não servem para
dar conta de meu constante e insaciável assédio. Adoro, sim e apenas,
apalpá-las.
Quanto
as outras, as populares –encontráveis em qualquer canto – são muito mais dóceis
e jeitosas. Claro que entre as viventes desse mundo infindo do acaso, aqui ou
acolá, algumas há que, com extrema rapidez e maestria, conseguem dar vida a
meus pensamentos, materializar minhas vontades. São verdadeiras luvas do
tamanho preciso de minhas necessidades.
Macias
e modestas a mais não poder, dispensam incensos, contentando-se com coisas
simples. Simples demais, até. Um guardanapo do restaurante onde jantamos; o
verso do calendário do ano passado; as folhas de caderno de estudos de um
filho, esquecido a um canto da casa. Serve-lhes também o saco de papel pardo que,
aos poucos, volta à moda, na luta contra a poluição do plástico. Melhor ainda,
se estiverem em um dos gavetões onde durmam segredos avoengos, umas tantas
folhas dos tempos quando me valia da máquina datilográfica para dizer de meus
desatinos.
As
preciosas companheiras populares, tudo sabem; sintonizadas com o quanto as
rodeia, nutrem meus pensamentos. Fazem de mim,
escrita-chama a incendiar recordações de sonhos de amor e de saudade. Não há
bombeiro certo para aplacar tais calores.
Como
se chamam?
Poderíamos
chamá-las Florbela Espanca, a qual em dia distante,
proclamou alto e bom som para quem quisesse ouvir. “Eu sou aquela de quem tens saudades, a princesa do conto: era uma vez ...”
E cada uma delas, falo das criaturas que animam os
meus contos, a cada uma delas eu, ingrato e impiedoso, espanco quando
exauridas pelos meus inesgotáveis desejos de mais e mais, na interminável
cadeia de aprendizagem, sul e norte, azar e sorte, vida e morte, lá me afogo
nesse entrevero de palavras vãs.
Vagabundeio,
mesmo sabendo que quem me lê, há muito sabe de
quem trato.
Mesmo
assim, descerro a cortina.
Canetas!
Falo delas, a exemplo da que ora empunho e de outras tantas, fontes de
epistolares gozos, sem negar fogo às
desajeitadas filigranas das quais me valho para confessar meu amor por elas.
Dato
e assino.
Um dia qualquer de qualquer ano,
duas louras maltadas,
Recôncavo Convexo.
Hugo Adão de
Bittencourt Carvalho (1941), economista, cronista, é autor do livro virtual
Bahia –
Terra de Todos os Charutos, das crônicas
Fumaças Magicas e Palavras ao Vento,
participa do
Colares – Coletivo Literário Arte de Escrever. Vive em São Gonçalo dos
Campos.
[email protected]
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