domingo, 2 de fevereiro de 2025

 


Paixões irrefreáveis

Para início da conversa, melhor deixar ao léu aflições atinentes aos ‘mimos da senilidade’, parceiros da maioria dos octogenários. Em paralelo -  embora pareça indiscrição ou cheire a mofo - fruo renovado prazer em tratar de certas convivências, intensas, insistentes, incólumes, malgrado o avançar dos anos.

Isso posto, iniciemos.

Mantenho por elas, paixões antigas, amor duradouro e irrefreável. Em particular pelas que se deixam dominar e atendem meus desejos, sem serem precisos retoques ou avivamentos. São o que são.

As de estirpes nobres, nomes afamados, vestidas de dourado ou não, não nasceram para meus afagos. Valeram-me, quando as mantive, para efêmeros prazeres - estares de duração equivalente ao tempo de uma simples assinatura - ou para açodar o invejoso deleite de olhares ao me verem  na companhia das ditas. Elas não servem para dar conta de meu constante e insaciável assédio. Adoro, sim e apenas, apalpá-las.

Quanto as outras, as populares –encontráveis em qualquer canto – são muito mais dóceis e jeitosas. Claro que entre as viventes desse mundo infindo do acaso, aqui ou acolá, algumas há que, com extrema rapidez e maestria, conseguem dar vida a meus pensamentos, materializar minhas vontades. São verdadeiras luvas do tamanho preciso de minhas necessidades.

Macias e modestas a mais não poder, dispensam incensos, contentando-se com coisas simples. Simples demais, até. Um guardanapo do restaurante onde jantamos; o verso do calendário do ano passado; as folhas de caderno de estudos de um filho, esquecido a um canto da casa. Serve-lhes também o saco de papel pardo que, aos poucos, volta à moda, na luta contra a poluição do plástico. Melhor ainda, se estiverem em um dos gavetões onde durmam segredos avoengos, umas tantas folhas dos tempos quando me valia da máquina datilográfica para dizer de meus desatinos.

As preciosas companheiras populares, tudo sabem; sintonizadas com o quanto as rodeia,  nutrem meus pensamentos. Fazem de mim, escrita-chama a incendiar recordações de sonhos de amor e de saudade. Não há bombeiro certo para aplacar tais calores.

Como se chamam?

Poderíamos chamá-las Florbela Espanca, a qual em dia distante, proclamou alto e bom som para quem quisesse ouvir. “Eu sou aquela de quem tens saudades, a princesa do conto: era uma vez ...”

E cada uma delas, falo das criaturas que animam os meus contos, a cada uma delas eu, ingrato e impiedoso, espanco quando exauridas pelos meus inesgotáveis desejos de mais e mais, na interminável cadeia de aprendizagem, sul e norte, azar e sorte, vida e morte, lá me afogo nesse entrevero de palavras vãs.

Vagabundeio, mesmo sabendo que quem me lê, há muito sabe de quem trato.

Mesmo assim, descerro a cortina.

Canetas!

Falo delas, a exemplo da que ora empunho e de outras tantas, fontes de epistolares gozos, sem negar fogo às desajeitadas filigranas das quais me valho para confessar meu amor por elas.

Dato e assino.

Um dia qualquer de qualquer ano,

duas louras maltadas,

Recôncavo Convexo.

 

Hugo Adão de Bittencourt Carvalho (1941), economista, cronista, é autor do livro virtual

Bahia – Terra de Todos os Charutos, das crônicas Fumaças Magicas e Palavras ao Vento,

participa do Colares – Coletivo Literário Arte de Escrever. Vive em São Gonçalo dos Campos.
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