sexta-feira, 19 de março de 2010

Século XXI


Eu não sei se foi Rubem Braga, Fernando Sabino, ou outro menos votado, quem escreveu uma crônica sobre este assunto. O fato é que eu a li já fazem mais de 20 anos e, quando li, ela já havia sido escrita há outros tantos 20. Falava de um sujeito, profissional liberal bem sucedido, que recebeu de presente, de um cliente morador da zona rural, uma galinha. Isso mesmo. Uma galinha, cheia de penas, ao vivo e em cores, fazendo “có, có, có” e tudo mais.
Naquele momento, lhe bateu saudade no coração e, no estômago, uma comichão. Lembrou dos tempos de menino, morando no interior, quando a preta velha, quituteira da casa, preparava uma galinha ao molho pardo de se comer e lamber os beiços (e os dedos, depois de chupar os ossinhos). Pensou consigo mesmo: “Hoje eu mato a saudade, e a fome, no capricho”.
O dia ficou comprido. As horas, os minutos, os segundos foram contados até o momento de ir para casa, entregar a galinha para a mulher e sentenciar: “Para a panela!”
Nem a mulher, nem a empregada, nem a vizinha. Ninguém queria ou sabia matar uma galinha. O filho menor então, nunca tinha visto uma galinha assim, ao vivo.
Quando eu li aquela crônica, eu nunca imaginei que um dia aquilo pudesse acontecer comigo. “Mas quá! – pensei – Vê lá se isso é possível? Nem daqui a cem anos”.
Não foram bem cem anos. Faz pouco tempo que eu ganhei uma galinha de presente e levei, todo contente, pra casa, entreguei pra mulher e sentenciei: “Molho pardo!”
Ela entortou o nariz e disse: “Quem vai matar? Eu não mato”. Minha filha, pela mesma forma, negou-se, alegando que tinha “pena”. De nada adiantou eu observar que quem tinha penas, era a galinha, e não ela. A empregada, claro, já havia acabado as tarefas do dia e ido embora. Graças a Deus, meu filho, ao contrário do filho do sujeito da crônica, já tinha visto uma galinha ao vivo, mas também não sabia que “aquilo” se comia.
O jeito foi eu mesmo cometer o assassinato. Puxei pela memória, lembrei como é que a preta velha lá de casa fazia quando eu era menino, e lá fui eu pro altar dos sacrifícios. Lembrei do caso que ela contava, do moleque que foi matar uma galinha, cortou a cabeça fora e depois ficou, em riste, faca numa mão, cabeça de galinha na outra, todo sujo de sangue e a galinha a correr pelo quintal, se debatendo e jorrando sangue pra todo lado.
Eu não. Fiz tudo direitinho. Prendi as pernas com o pé direito, as asas com o esquerdo, segurei a cabeça com a mão esquerda e, com a direita, manejando a faca, retirei algumas penas do pescoço. Bati com o lado da faca pra “chamar o sangue”, e corri o fio da faca pela jugular (ou carótida, sei lá) da penosa, aparando o sangue numa tigela. Só cometi um pequeno erro. Não coloquei vinagre, pra evitar que o sangue coalhasse. Mas nada que a mulher não pudesse dar um jeito, batendo o sangue coagulado, com vinagre, no liquidificador. Se não ficou uma galinha ao molho pardo “ética”, pelo menos ficou genérica ou similar.
Quando eu contei esse caso a amigo, ele me disse que algo parecido havia acontecido com ele, quando ele foi morar numa chácara. Ele comprou umas galinhas e levou pra casa. Quando quis comer uma, ninguém queria ou sabia matar. Apenas uma sua tia se prestou ao serviço, mas só se fosse de revólver. Entendia ela que, de tiro, era “menos penoso” (olha a pena aí de novo).
Entrou em casa, pegou um tresoitão na bolsa (que esta violência anda desenfreada), e partiu para cometer o crime. Ela mirava, virava o rosto pra não ver e apertava o gatilho: Bang, bang, bang. Era ela correndo atrás e a galinha na frente, esbaforida, soltando penas e gritando: Có, có, (socorro) có, có.
Aí eu fiquei pensando. Nós estamos no topo da cadeia alimentar. Somos carnívoros, reis do planeta, acima de todos os seres vivos da Terra. E quando não houver mais galinhas, perdizes, pacas, veados, antílopes, etc. , o que nós, predadores por natureza, iremos caçar?
Será que seremos predadores de nós mesmos, dos nossos semelhantes? Já pensaram que talvez isto já esteja acontecendo?

*Crônica escrita em 2003. Publicada no livro A Levada da Égua.

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