Um deles explica: "Dou entrevista
para você, sim, parça. Ainda está suave, porque o bagulho aqui só
estrala às 7 horas da noite. Então, nessa hora, começa a pingar pedidos e
eu não paro mais".
O grande relógio no Conjunto Nacional, no
alto da avenida Paulista, mostra que faltam 36 minutos para esse ponto
de inflexão diária para os aplicativos de entrega em São Paulo.
Em
outras palavras: o horário em que milhares de pessoas chegam em casa,
olham a geladeira, desistem de cozinhar e resolvem pedir comida por
alguma das plataformas disponíveis.
Os entregadores aguardam esse momento do rush sentados em
calçadas próximas a shopping centers, restaurantes ou supermercados.
Então, por volta das 19h, começam a pipocar os pedidos nos celulares: os
jovens pegam as mochilas, as bicicletas ou motos e partem para a
correria da noite.
Durante uma semana, a BBC News Brasil
conversou com dezenas de trabalhadores do setor em três pontos de
concentração deles na cidade: avenida Paulista e os bairros de Pinheiros
e Higienópolis - locais com grande oferta de comércio.
Os entregadores, no entanto, não moram nesses bairros. Vivem
principalmente na periferia ou em cidades da Grande São Paulo. Para
chegar ao trabalho, percorrem até 30 km - às vezes, pedalando.
Em um momento de crise econômica e alta do
desemprego, os aplicativos de serviços como Uber, iFood, 99 e Rappi
atraem desempregados e pessoas que têm dificuldades para se inserir no
mercado de trabalho com a perspectiva de obter alguma renda.
No
mês passado, um estudo do Instituto Locomotiva, publicado pelo jornal O
Estado de S.Paulo, apontou que quatro milhões de pessoas trabalham para
essas plataformas no Brasil hoje - 17 mihões usam os serviços
regularmente.
O aplicativo colombiano Rappi, por exemplo, começou a
operar no país em julho do ano passado e hoje vê seu número de entregas
aumentar 30% ao mês.
Por outro lado, o crescimento do negócio vem
acompanhado de críticas. Especialistas afirmam que as empresas ajudam a
precarizar o trabalho, pois elas não costumam seguir as leis
trabalhistas. Seus colaboradores fazem jornadas de trabalho muito mais
longas que as oito horas previstas pela Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), por exemplo.
'As vantagens de ser motoboy'
Nas
ruas de São Paulo, existem duas categorias de entregadores de
aplicativos: os motoqueiros e os ciclistas. Elas concorrem entre si.
Quem
tem uma moto recebe mais pedidos, trabalha de uma forma menos exaustiva
e, principalmente, consegue ter uma renda maior - às vezes, recebe até o
dobro do ciclista. Os motoboys que fazem jornadas de 12 horas diárias,
por exemplo, ganham cerca de R$ 4 mil mensais, em média.
É o
caso de Rodrigo Versutti, 41, que conseguiu aumentar seus vencimentos
migrando do serviço de motoboy tradicional - que entrega documentos,
principalmente - para o delivery de comida.
Hoje, ele ganha mais, sem dúvida, mas precisou abrir
mão dos direitos trabalhistas da CLT, como seguro-desemprego, fundo de
garantia e férias remuneradas. "Trabalho há 20 anos como motoboy e nunca
tive uma renda como agora", explica.
Ex-pintor de paredes,
Antônio Francisco Alves, de 41 anos, tem trajetória parecida: ganha
quase o dobro do que recebia no trabalho anterior. Na crise, a falta de
serviços regulares o empurrou para os aplicativos. "Parado eu não iria
ficar. Eu tinha uma moto, mas nunca tinha trabalhado com ela", diz.
Todos
os dias ele se posiciona na calçada em frente a um shopping em
Higienópolis, bairro de classe média alta de São Paulo. Trabalha das 11h
às 23h. Por que tanto tempo?
Porque plataforma iFood incentiva a
permanência dos entregadores no local por meio de bônus financeiros. Se
um motoboy ficar 12 horas por ali, ganha R$ 190 pelo período, além do
dinheiro das entregas.
Pode parecer vantajoso, a princípio, mas
não há garantias de que o esquema vá continuar por muito tempo.
Aplicativos de serviços costumam dar prêmios para aumentar o número de
colaboradores ou para suprir a demanda de uma área com pouca cobertura.
Depois, aos poucos, as bonificações diminuem ou até desaparecem.
Nesse
caso, o entregador pode perder o bônus diário caso fique offline,
recuse alguma corrida ou se distancie do ponto sem nenhum pedido nas
mãos - ou seja, ele precisa ficar imóvel e aceitar todas as corridas,
independentemente de horário ou distância.
'O paradoxo dos ciclistas'
Já o entregador que usa bicicleta, por sua vez, vive
uma espécie de paradoxo: por mais que a tecnologia faça a roda do
delivery girar, o trabalho dele depende essencialmente da força física.
Quanto mais ele pedalar, quanto mais quilômetros percorrer pela cidade,
maior será sua remuneração.
Por isso, os ciclistas ouvidos pela
reportagem relataram fazer jornadas de mais de 12 horas diárias,
trabalhar muitas vezes sem folgas e até dormir na rua para emendar um
horário de pico no outro, sem voltar para casa.
Em média, eles
conseguem uma renda mensal de R$ 2 mil, segundo relatos. As empresas não
revelam dados sobre o perfil de seus colaboradores, mas, em uma semana
de conversas, a reportagem constatou que grande parte pertence às
classes mais baixas, mora em bairros periféricos e tem dificuldade para
conseguir empregos no mercado formal.
Um deles é Carlos Henrique
Lima, de 18 anos, de Cotia, cidade da Grande São Paulo. Todos os dias,
ele pedala os 30 km que separam sua casa do bairro de Pinheiros. "Isso é
só na ida, parça", afirma. Contando ida, volta e entregas, ele percorre
por volta de 80 km diários, diz.
Sai de casa às 9h, pedalando
pela rodovia Raposo Tavares até chegar à capital, às 10h30. Como a
maioria, ele não usa - e as empresas não fornecem - equipamentos de
segurança, como capacetes.
Depois, Carlos participa de um programa
do iFood conhecido como "OL" - os entregadores chamam de "onda". Das
11h às 13h, ele trabalha para apenas um restaurante. Ganha R$ 20 por
esse período e mais R$ 1,50 por refeição entregue. Também recebe uma
marmita para almoçar.
A "onda" é uma espécie de bônus que também serve
para atrair os entregadores. Quando ela começou, há alguns meses, era
mais vantajosa financeiramente, pois pagava R$ 40 por período de duas
horas. Mas o valor foi caindo ao longo do tempo, o que fez alguns
desistirem do modelo.
Depois da "onda", Carlos vai até um posto
do iFood no mesmo bairro. No local, a empresa disponibiliza café, água,
banheiro e pufes. Dezenas de entregadores passam a tarde ali, momento em
que os pedidos diminuem bastante.
Eles dormem em pufes ou no
chão, jogam pebolim e carregam os celulares para o rush da noite. "Essa é
a hora do descanso", explica Carlos.
A jornada do rapaz, porém, vai até as 23h, quando ele retorna para Cotia de bicicleta.
Ao
seu lado está Thales Coelho, 20, de Cajamar, também na Grande São
Paulo. O jovem prefere chegar à capital de trem. No entanto, para
trabalhar, aluga uma bicicleta do serviço de empréstimo do banco Itaú -
são R$ 20 por mês. Mas, a cada uma hora de uso, Thales precisa trocar a
unidade ou renová-la.
Ele começou nos aplicativos depois de perder
o emprego de operador de telemarketing, há alguns meses. "A empresa
faliu e eu não queria ficar em casa parado", diz. Ele afirma ganhar
cerca de R$ 300 por semana.
'Uberização'
Pesquisa realizada pela Fundação Instituto
Administração (FIA) e divulgada pela Associação Brasileira Online to
Offline (ABO2O) aponta que a idade média do entregador é de 29 anos - os
números contemplam motoboys e ciclistas. A maioria (97,4%) é homem; 73%
têm apenas o ensino médio completo, e 11,7% já concluíram ensino
superior ou pós-graduação.
Durante as conversas com a reportagem,
muitos deles usaram o mesmo argumento para explicar por que atuam no
setor: "O trabalho é a gente que faz".
Para eles, os aplicativos
de entrega oferecem certa liberdade que não teriam em uma função mais
formal. Ou seja, você escolhe seu horário, trabalha o quanto quiser,
pode ir embora a qualquer hora e, para ganhar mais, basta se esforçar
mais, segundo eles.
"Coloquei na minha cabeça que a crise é você
quem faz", diz Carlos, que também é grafiteiro e sonha em se mudar para o
Chile. "Um celular já te arruma um emprego. Se você se dedicar,
consegue ganhar R$ 1 mil em um dia. Vai do seu esforço."
Esse discurso de "autogerenciamento" do trabalho é parecido com o adotado pelas plataformas.
A
Uber respondeu aos questionamentos da BBC News Brasil com a seguinte
nota: "O Uber Eats é uma empresa que oferece oportunidades a
profissionais autônomos que podem se beneficiar da tecnologia para gerar
renda extra ao toque de um botão. Os entregadores parceiros são
autônomos, escolhem como e quando utilizarão o aplicativo como geração
de renda".
A Rappi afirmou: "Estes, profissionais autônomos, atuam
por conta própria, portanto, podem se conectar e desconectar do
aplicativo quando desejarem. A flexibilidade permite que esses
profissionais usem a plataforma da maneira que quiserem e de acordo com
suas necessidades. Não há relação de subordinação, exclusividade ou
cumprimento de cargas horárias".
Já o iFood afirma que "está
testando estruturas com espaço para descanso, recarrega de celular e
banheiros". Também diz que "outras ações incluem campanhas que estimulam
boas práticas entre os parceiros de entrega por meio de vídeos
educativos".
Por outro lado, apesar de geração de renda, esse
modelo de trabalho tem sido criticado por especialistas. Há quem chame o
fenômeno de "uberização", em referência à visibilidade que o aplicativo
de transporte Uber ganhou nos últimos anos.
Inicialmente, a
plataforma foi criticada por se recusar a seguir qualquer regulação
estatal e por não estabelecer vínculos empregatícios com seus
colaboradores. Porém, a empresa sempre alegou que sua tecnologia apenas
facilita a interação entre quem precisa do serviço e quem o oferece.
Para a pós-doutoranda Ludmila Costhek Abilio,
pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da
Unicamp, a chamada "uberização" é uma tendência no mercado de trabalho.
"Esse processo é de informalização, que vem tirando as garantias e
proteções. Agora, é o trabalhador quem entra com os meios de produção,
além de arcar com os custos e com os riscos da atividade", explica.
"Supostamente,
a pessoa trabalha onde e quando quer, mas a verdade é que ela está
trabalhando cada vez mais. O que estamos estudando é como esses
trabalhadores estão subordinados aos algoritimos, às regras de cobrança,
às comissões e às metas de produtividade. Não me parece que as escolhas
sejam tão amplas assim", diz Costhek Abilio.
Em outras palavras, o
motoboy André dos Santos, 30, concorda com essa visão: "Quem tem
disposição realmente consegue ganhar dinheiro. Mas tudo o que acontece
depende de você: se cair e se machucar, você está sozinho; se chover e
não trabalhar, não ganha nada. Se morrer, ninguém vai pagar o seguro
para sua família, ninguém vai ligar para sua mulher", diz.
'Ida e volta para a quebrada'
Para
os entregadores, os dias de chuva e os finais de semana são os mais
lucrativos, pois o número de pedidos e o valor do frete aumentam. Um
domingo, por exemplo, pode render até R$ 200 em entregas. "O povo não
gosta de cozinhar nem sair de casa nesses dias", explica Welquer
Vicente, de 27 anos.
Ele mora no Jabaquara, na zona sul, e
trabalha na região da Paulista. Conta já ter virado a noite de sábado
fazendo entregas, emendando a jornada noturna ao domingo seguinte, sem
voltar para casa.
"Tenho pensão de um filho para pagar", diz.
Seu
colega, Gabriel Di Pieri, 18, conta não ter visto muito a família nos
últimos meses. "Chego em casa, tomo um banho e durmo. Não vejo ninguém",
diz. Ele tem juntado o dinheiro das entregas para pagar a faculdade de
gastronomia que sonha fazer.
Em Pinheiros, Gabriel de Jesus, 22,
diz já ter virado o fim de semana trabalhando, também. "Sábado à noite a
gente dorme na praça Victor Civita. Não vale a pena voltar para casa e
depois vir para cá de novo, de manhã", diz. Seu amigo, Robert dos
Santos, completa: "A gente reveza: um dorme no banco e outro fica
acordado para proteger dos roubos".
Robert mora no Campo Limpo,
também na zona sul paulistana. Todas as manhãs, ele percorre 15 km até
Pinheiros, de bicicleta. "Isso é só a ida, parça. Depois, trabalho o dia
todo, até meia-noite", diz.
Ele pensa em seguir no setor: quer
comprar uma moto para ascender na escala dos aplicativos. "Agora que já
tenho as manhas do trabalho, que já conheço as ruas, só me falta um
motor." (BBC News Brasil)
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