domingo, 29 de setembro de 2024

 


CASAMENTO ‘SOÇAITE’

Século XIX - Aula de heráldica                   

Mantenho alguns livros com temas atraentes, parte valiosa de meu cabedal de descompromissadas leituras.  Entre as ditas, Memórias da História Baiana - crônicas de vários autores - retratos do cotidiano de tempos imperiais, nas terras jacentes a Caramurê.¹

Por considerar interessante, reproduzo o testemunho das ilustres presenças, em casório na vizinha e histórica cidade de Santo Amaro da Purificação. Uma aula de heráldica, associada a eufemísticas indiscrições raciais da fidalguia, algo que, então, não se submetia à compostura do politicamente correto.

Procedidos um ou outro ajuste ortográfico, retrocedamos uns cento e setenta anos.

 Festa estrondosa, retumbante. Assistida pela nobreza dos engenhos em derredor, num raio de léguas mui estiradas. As cinco estrelas de ouro dos Moniz, as quatro palas² sanguinhas³ dos Aragão, a bandeira de ouro franjada de prata dos Bandeira, as duas caldeiras negras dos Pacheco, o anel dos Meneses, as cinco estrelas vermelhas dos Coitinho, a oliveira arrancada e frutada de ouro dos Oliveira, as faixas veiradas dos Vasconcelos, o leão de púrpura dos Silva, a aspa azul dos Araújo, a águia dos Viana, os cinco brandões de ouro dos Brandão, as duas bezerras de ouro dos Bezerra, os arminhos negros dos Barreto, a ribeira de prata dos Garcez, as seis quadernas de prata dos Góes, as faixas azuis dos Rios, a torre de prata dos Pina, a torre e a banda de ouro dos Pita, a asa de ouro carregada de um S negro dos Mendonça, os cinco pinheiros frutados de ouro dos Pinho, o muro de prata e a cabeça de mouro dos Mendes, as cinco vieiras de ouro dos Sequeira, os três bordões¹³ de prata perfilados dos Falcão, os cinco ciprestes dos Caldas, a doble cruz e seus besantes dos Melo, a aspa vermelha carregada de cinco vieiras de ouro dos Rocha, as seis costas de prata dos Costa, as cinco asas de ouro dos Abreu, as nove cunhas azuis dos Cunha, a estrela de ouro encerrada na quaderna de crescentes de prata dos Carvalho, a cruz de prata florenciada e vazia¹⁰ dos Pereira, as quatro faixas de ouro dos Ferreira, os três montes verdes com os seus ramos de urtiga dos Viveiros e muitas outras figuras heráldicas baralhavam-se ali. O que não impedia, aliás, a presença de algum cabelo discretamente ondeado, de alguma cútis levemente tanada, de algum pé de unha moreno, de alguma nádega mais farta, que estavam a denunciar a circulação de gotas de sangue camita¹¹ nas veias azuis de senhores moços emproados e ‘iaiazinhas’ faceiras presentes aquela rumorosa e numerosa cita da fidalguia da zona que a custo se mexia nos vastos salões da vasta casa-grande, dançando, rindo, palrando, comendo, bebendo e discursando. Bródio¹² de arromba, sim senhor!”

Como, nos dias correntes, certos termos, escapam à mortal compreensão – e, por não termos sido iniciados em tais mesuras –, tive o cuidado de reportar o significado de uma dúzia deles, ao rodapé deste trabalho.

Almejo, tais esclarecimentos hajam valido a pena.

 

 

Hugo Adão de Bittencourt Carvalho (1941), economista, cronista, é autor do livro virtual

Bahia – Terra de Todos os Charutos, das crônicas Fumaças Magicas e Palavras ao Vento,

participa do Colares – Coletivo Literário Arte de Escrever. Vive em São Gonçalo dos Campos - BA
[email protected]

http://livrodoscharutos.blogspot.com

1.      Caramurê: nome original, indígena, da baía ora denominada “de Todos os Santos”.  – In “Cafuzo” - Pedro Soledade – Ed Urutau – 2023

2.      Pala: em heráldica, é uma peça de um brasão que assume a forma de uma banda, verticalmente centrada ao longo do escudo.

3.      Sanguinho: esmalte de tom semelhante ao sangue arterial.

4.      Veiro: guarnição metálica dos escudos e brasões, composta por uma sequência de peças azuis e peças prateadas que se encaixam alternadamente.

5.      Aspa: trata-se de uma insígnia em forma de X que simboliza o estandarte ou guião do chefe.

6.      Brandões: plural de brandão; simplificadamente significa archotes, círios, fachos, fogaréus, tochas. 

7.      Quadernas: termo náutico que significa, em uma embarcação, cada uma das costelas de madeira, ou outro material, paralelas e separadas, encaixadas perpendicularmente na quilha, compondo a estrutura suporte do casco

8.      Vieiras: entre nós, são mais conhecidas por conchas.

9.      Besantes: em heráldica significa peça circular de ouro ou prata (algo como uma moeda), sem marca, figurada no brasão de armas.

10.  Florenciada e vazia: símbolo que representa a fé em Jesus Cristo, assemelhado com a cruz latina, porém com suas extremidades ornamentadas em formas parecidas com a flor-de-lis; diz-se vazia por não conter a imagem de Jesus crucificado.

11.  Sangue camita: relativo a ou indivíduo dos vários povos da África Setentrional, considerados como descendentes de Cam, segundo filho de Noé, ou das antigas tribos e povos a ele relacionados.

12.  Bródio: banquete ou refeição farta e alegre.


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