domingo, 8 de dezembro de 2024

 


Do areal ao massapê – Velada ‘semengrafia’

       

     Ante o estrelado reflexo do céu porto-alegrense, nas mansas águas do lago Guaíba, equilibro-me na linha do tempo e revolvo escaninhos da memória.

     Como pretenso contador de histórias, trago à tona a de certo amigo e coetâneo, oriundo, como eu, das bandas em torno do paralelo 30º Sul e do meridiano 50º Oeste -  capital gaúcha. 

     Diz-se, aí afora, “quem conta um conto, acrescenta um ponto”. Eu deletei vários ... Falar-se de alguém, amigo íntimo, impõe limites ao que possa vir a ser desconfortável a uma ou outra persona colateral da trama.

   Tudo me foi recordado em inesquecível e ocasional encontro nas finas areias da Praia do Cassino, a mais meridional praia de nosso costado atlântico.

   O homem da nossa história, chama-se Adão. Coisas da vida, posto que o dito, fugindo à tradição do homônimo bíblico, provou maçãs em diversos paraísos, serpenteou em muitos carnavais, valsou com algumas evas, eternizou-se em joões e marias. 

    Na verdade, aprecia ser tratado por ‘Adão Bê’. Quando inquirido a respeito, valia-se de sintético sorriso e justificava-se:  - Com o primitivo quero continuar mantendo milenar distância. 

                          Vamos à história.

    As tropas nazistas marchavam rumo à fria estepe russa - onde o ‘General Inverno’ as derrotou fragorosamente – quando, Adão Bê estreava na comédia humana, rente ao Guaíba, então por rio, tido. Agora, lago. Não foi à toa que, naquelas lonjuras sulistas, para o povo originário Kaingang - etnia Charrua, família linguística Jês - Guaíba significava ‘lugar onde o rio se ala(r)ga’. 

     Parte maior da infância, Adão Bê viveu com seus avós, na mais velha cidade gaúcha – Rio Grande – nome estendido ao estado sulino.

    Um areal horizontino; os que lá nascem são conhecidos por ‘papa-areias’. Terras beira-mar, entreposto portuário e pesqueiro. Praia do Cassino: 240 quilômetros, de Rio Grande ao Chuí. Segundo o Guines, a mais extensa faixa de areia litorânea.

    Padroeiro daquele torrão pátrio, Pedro, o apóstolo pe(s)cador.

  Anos quarenta. Adão Bê cresceu naquelas terras alvas, arenosas e macias, contra as quais, a ‘pá de corte’ - retilínea, gume afilado – não encontrava resistência; ferramenta ideal para cavar. Na paz, covas para plantar cereais, sepultar mortos. Na refrega farroupilha, para trincheiras e enterrar cadáveres. Por todo o sempre, após rasgar a terra, para dar-se fogo à lenha ali deitada, assando enormes nacos de carne bovina, espetados ao redor do ardente braseiro. Lembremos sempre, das brasas ou braseiro, adveio brasil(eiro).

    O chiado da água fervente na chaleira, somado ao ronco aspirado da bomba na cuia do chimarrão, música aos ouvidos de nosso personagem. Carroças e mais carroças enormes, rodas de madeira com aros de ferro, azucrinante barulheira nas ruas em pedras calçadas. 

  Folguedos infantis, bolinhas de gude, estilingues, pular corda só ou acompanhado, bolas de meias, cantigas de roda, primeiras letras.

  Imaginários discos voadores nas nuvens, bobos balões meteorológicos novidadeiros. Emilinha Borba, anunciando Momo e o existencialismo, cantando ‘Chiquita Bacana, lá da Martinica, se veste com uma casca de banana nanica’.

  Carnavais de rua, corsos, blocos de ‘sujos’, mulheres e homens travestidos. Confetes, ao povão; lança-perfumes, aos abastados.

  Chegada festiva do Ano Santo 1950; Pio XII: abundantes indulgências papais, medalhinhas, às centenas, de Nossa Senhora das Graças...

   Exame de admissão ao curso ginasial. O uniforme cáqui - talabarte, ‘casquete’, gravata e sapatos pretos - desconhecia as quatro distintas estações do ano.

  Quatro, também, foram os anos de latim. ‘Ludus primus, secundus, tertius e quartus’. Verdadeiro ‘bicho-papão’ àquela garotada imberbe.

   O périplo ginasial alternou-se entre as duas citadas paragens. Colégios, sempre católicos. São Francisco, nas areias riograndinas. Nossa Senhora do Rosário, na capital. Lá, cuidados avoengos; cá, zelos paternos. Findo o ginásio, nova guinada geográfica.

  Curso Científico em Pelotas, destacado centro universitário e cultural sulista. Colégio de ascendência jesuítica. Três anos de intensa vivência sócio estudantil.

  Então, ‘tchau’ uniforme cáqui e boas-vindas ao terno azul marinho, sempre engravatado. Em momentos esportivos, calça branca e camisa vermelha, tendo estampado ao peito, a palavra ‘Gonzaga’. Nome do santo protetor da instituição: São Luiz Gonzaga, mais jesuítico, impossível.

   Desfiles cívicos, banda marcial; foi ‘tocador de bumbo’ ou ‘bumbeiro-mor’, como queiram. Congressos estaduais. Olimpíadas secundaristas. Dramaturgia, peças teatrais. Laboratório de química. Academia literária, seu patrono, Paulo Setúbal. Congregações religiosas.  O coral de missas e novenas na Catedral, contígua ao colégio...

  Sessões cinematográficas. Grêmio estudantil, jornalzinho. Campeonatos de futebol, vôlei e basquete. Comemorações várias, churrascadas. ‘Galetos ‘al primo canto’, polenta, sagu. Bombachas, danças típicas.

     Muito mais que escola, o educandário pelotense foi, casa de ensino de primeira grandeza e inigualável polo de formação de cidadania, refletidos ao longo de sua existência.

   - Qual a grande falha, então? Foi o absoluto silêncio pedagógico sobre os ‘pecaminosos’ assuntos sexuais. Na verdade, religiosos não são as pessoas ideais para tratar de tais temas. Daí, o chiste desta viagem do areal ao massapê, ao defini-la como velada ‘semengrafia’. Isso, foi tangenciado, ‘en passant’, quando da referência a “joões e marias”.

    Extra muros escolares, a primeira namoradinha. Mãe gaúcha, pai uruguaio. Nome exótico – Gladys – refinado perfume – Chanel nº 5. Cinéfilo, ansiava pela sessão dominical, para segredinhos e carícias. Durou pouco. Concluído o estudo pré-universitário, véspera dos 18 anos, retornou à capital. Ele adorava escrever. Em carinhosa cartinha, deu adeus à linda ‘prenda’ e a Deus, o seu futuro.

       E afinal, onde agora, vive Adão Bê?

     Em terras de Caramurê, a histórica baía baiana a todos os santos devotada. Terras de múltipla qualidade. As lindeiras ao mar, arenosas, ótimas para o tabaco, o amendoim, os tubérculos; noutras mais, bandeadas para o nordeste, massapê. Nestas, com o sangue e o suor dos escravizados, vicejaram canaviais e usinas açucareiras, que produziram riquezas e a fama do Recôncavo Baiano.

    Adão Bê as esfarelou em suas mãos, nos idos anos sessenta. A doçura das novas terras, em contraposição à salinidade das areias riograndinas, edulcorou sua vida. Nelas, desde então, bem vivida. Por isso... 

       A história segue sendo escrita...   

 

< Semelhanças com fatos reais, poderão ser mera coincidência. Ou não. >

Hugo Adão de Bittencourt Carvalho (1941), economista, cronista, é autor do livro virtual

Bahia – Terra de Todos os Charutos, das crônicas Fumaças Magicas e Palavras ao Vento,

participa do Colares – Coletivo Literário Arte de Escrever. Vive em São Gonçalo dos Campos.

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