segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Segunda é dia de crônica - O homem e o tempo

Nada será como antes, amanhã. Ou depois de amanhã. Viver é cada dia ficar órfão de ontem. Eu sabia que seria assim, mas já faz tanto tempo que estou com o pé na estrada que já são outros os alvoroços em meu coração. Sou um homem e seu tempo. Uma fagulha ligeira antes da extinção, mas um homem e seu tempo. Mastigo suas horas sabendo que estou roendo a permanência. Sou outro e os ventos do Norte já não movem moinhos, mas ainda circula nas minhas veias abertas de América Latina qualquer coisa que não aconteceu, uma esperança que desandou ou entardeceu.

Lembro, bem me lembro, tanta coisa que ficou para trás. Aquelas carreiras estudantis no Campo Grande fugindo dos policiais e seu gás lacrimogênio; a cara pintada lutando para escolher o próprio destino – afinal, a liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda. A bala que matou Lennon, imagine; o massacre na Praça da Paz Celestial – o homem diante da coluna de tanques com o saco de pão não me sai da memória. Nada do que é humano me é estranho. Eu animal. Eu Deus.

Sou um homem e seu tempo. O napalm esfolando a pele, o agente laranja esfolando as folhas, a cerveja esfolando a sede no Avalanche, meu clube da esquina. Eu esfolando meu corpo no corpo dela. A saias e os tabus caindo com os relatórios médicos, como caiu o muro de Berlim. Para o dia nascer feliz. Feliz como um galo quando havia galos, noites e quintais.

E, por falar em saudade, havia aquele garoto que, como eu, amava os Beatles e os Rolling Stones, escrevia versos na areia da praia – como são tolos e imprescindíveis os poetas –, bêbado de arrebatamento e álcool, e que andava de cidade em cidade, mas sem querer ficar por lá. I want to go back to Bahia.

Sou um homem e seu tempo. Não mais um menino da Rua Paulo, mas sem escapar até a velhice do garoto que fui. O tempo moderno cai como um viaduto, ficando cada vez mais curto, por isso preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Por isso amo você quando me lê. Não me considere exagerado, jogado aos seus pés – é porque não sou um, sou trezentos, trezentos e cinquenta.

E, no entanto, ainda sou o mesmo e vivo como meus pais.

Tanta coisa ficou para trás. Meus mortos, meus caminhos tortos. São apenas um retrato na parede, mas como dói, nessa insustentável leveza de ser.

 

𝗖𝗲𝘀𝗮𝗿 𝗢𝗹𝗶𝘃𝗲𝗶𝗿𝗮 - Tabaréu, feirense, médico, professor, apaixonado por palavras, pessoas e a vida. Sou de mato, vinhos, cafés, pratos, prosas - falada e escrita. Essa tem sido minha receita.

 

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