quinta-feira, 19 de maio de 2011

Vivendo com uma sombra

Anônima **


Há algumas semanas soube por uma amiga que uma menina da família dela tinha sido molestada pelo padrasto, e que a mãe não fez nada porque não acreditou na garota. O sentimento de revolta me consumiu naquele momento foi tão intenso, que desejei bater muito naquela “mãe”. Não posso conceber uma mãe ouvir de uma filha que ela está sendo molestada e simplesmente achar que a garota está mentindo, sem sequer averiguar, sem desconfiar, sem dar um mínimo de crédito à história. Sei que, neste caso específico, a menina resolveu ir morar com o pai. É adolescente já, então tem este poder de escolha. Mas, e se ela fosse uma criança ainda, com menos de 10 anos? E as que não tem essa opção que ela teve? Eu odiei (e ainda odeio) profundamente essa mãe, que sequer conheço, por conta disto.

No entanto, foi justamente este caso que me estimulou a escrever sobre o assunto. Nunca escrevi sobre isto, um verdadeiro tabu nos temas dos meus textos, justamente porque eu também fui vítima um dia.

Sempre se ouve falar de casos e mais casos de pedofilia onde a criança terminou morta ou muito ferida fisicamente, além claro do fator psicológico. Mas são poucos os casos onde se escuta/lê relatos de pessoas que passaram por isso e superaram, seguiram em frente, formaram família. O que fazem as vítimas quando se tornam mães e pais? A blogueira Mari Hart, mãe de 3 filhos, teve a coragem de falar abertamente que passou por isto, e como lida com o problema hoje. (Leia aqui.)

Os relatos que já li sempre estão permeados de muito medo e traumas, além da mágoa em si, e dão a entender que a pessoa não está sabendo seguir adiante. Como o caso de um rapaz que não consegue namorar ninguém, ou da moça que deixou de casar com o grande amor de sua vida, por medo de que um dia eles tivessem filhos e o pai os molestasse, como aconteceu com ela, embora o rapaz nunca tivesse dado qualquer indício de ser uma pessoa mentalmente perturbada para fazer algo do gênero. Daí vocês podem perguntar: “E como alguém pode saber?” Olha, quem passa por isto acaba percebendo quando topa com um. Porque passamos a confiar menos, porque procuramos ler especialistas sobre o tema pra entender como pedófilos se comportam e como reconhecê-los (e fazemos isso com mais afinco que a maioria) e porque, talvez por defesa, acabamos desenvolvendo um “faro” pra reconhecer estes doentes à distância e correr milhas deles. Já me deparei com pedófilos aí pela vida, e alertei como pude a quem de interesse que por Deus observasse melhor e não confiasse.

Mas, voltando à questão das sequelas psicológicas, eu – assim como a Mari – me sinto privilegiada por ter seguido em frente. Na verdade, o meu caso foi “light” (se é que se pode classificar essa abominação), em relação a muitos que ouço. Não fui violentada fisicamente, não aconteceu por muito tempo. Tinha entre 5 e 6 anos, e uma empregada me obrigou algumas vezes a fazer sexo oral nela. Lembro que quando eu reclamava, ela passava açúcar e mandava eu lamber. Pesado? Então nem queiram saber de outros relatos que já ouvi por aí... E eu encontrei meu mecanismo de defesa: aprontei e infernizei ela, quando meus pais estavam em casa, até eles cansarem e demitirem ela. Foi arriscado? Foi. Mas eu não tinha noção de risco assim tão clara, e sabia que quando eu encrencava com alguém, minha mãe não tinha tempo ou paciência pra lidar com a situação e mudava de empregada. Usei um defeito da minha mãe em meu favor. E eles nunca ficaram sabendo o que realmente aconteceu... No começo, eu tinha medo dela voltar. Depois, eu tinha vergonha porque achava que eu tinha 'culpa' pelo que acontecia. E mais depois, porque eu bloqueei a lembrança.

Não me tornei homofóbica, não tive nojo ou medo de sexo, tive namoros normais, segui a minha vida de forma relativamente saudável. Mas, uma coisa é certa: eu sempre tive muito mais malícia pra sacar as situações do que a maioria dos meus amigos. Com a lembrança bloqueada, eu não sabia o motivo disso, mas hoje eu sei.

Os anos se passaram e eu me tornei mãe. Um dia, quando tive que contratar uma babá a coisa toda voltou à tona. Aí veio o pânico. Não conseguia ficar muito tempo com uma babá, jamais deixei a bebê sozinha com a babá, e até me atrasei algumas vezes para o trabalho, porque só saia de casa quando chegava um dos meus pais pra ficar de olho na babá. Quando comecei a ter pesadelos, não dormir bem e não render no trabalho por neurose, procurei ajuda. Então, pela primeira vez na vida, procurei o meu pai e contei o que tinha acontecido. Meu pai chorou. Vi em seu rosto o quanto ele ficou frustrado por não ter podido me defender, por não poder procurar a pessoa pra buscar justiça (pois eu sequer lembro mais o nome dela), frustrado por eu ter passado tantos anos com aquilo guardado sem saber e sem poder fazer nada a respeito. Foi como alguém que chega 1hs depois que o último trem partiu.

Naquele momento eu compreendi que, como mãe, preciso lutar para ter uma relação de muita confiança com as minhas crianças e tentar, de algum jeito, fazê-las acreditar que podem me contar absolutamente qualquer coisa e confiar em mim, pois estarei lá por elas. Diferente dos meus pais, eu não trabalho fora, estou sempre em casa, o que me dá uma vantagem nesse processo. Eu não falava pra eles, porque achava que quando eles saíssem, eu seria castigada por ter contado. E eles não tinham culpa. Nunca os culpei por isso. No meu caso, eu tive a sorte de não precisar trabalhar fora pra ajudar no sustento da casa, então posso ficar por perto full time.

Depois de conseguir me abrir sobre isto com meu pai, me senti mais leve e finalmente consegui lidar com o fato. Transformei ele numa 'paranoia diferente' que, honestamente, eu acho até benéfica. Por exemplo, eu nunca deixei e nem pretendo deixar meus filhos irem a passeios escolares, ou dormir em casa de amigos, ou saírem pra festinhas e passeios sem a presença de um dos pais ou de alguém da minha absoluta confiança, antes que tenha idade e discernimento para entender o que é pedofilia e as formas que podem se prevenir um pouco disto. Não deixo que peguem o elevador com pessoas estranhas, a não deixar ninguém ajudar na hora de ir ao banheiro na escola (nem mesmo outros coleguinhas), a não sentar no colo de ninguém fora de casa e longe de mim, ensino a não confiarem em ninguém de fora, e ainda estimulo a me contar tudo sobre como foi o dia e falamos sobre cada fato que aconteceu. Observo mínimas alterações de humor e converso sobre o assunto para saber se há algo de errado. Enfim... medidas que talvez todos devessem tomar, mas que eu tenho uma necessidade um tanto maior que a maioria em fazer, devido à minha preocupação exacerbada e mais que justificada. Este é, definitivamente, um ponto onde eu prefiro pecar pelo excesso.

Resolvi falar sobre isso como forma de dar a minha contribuição pela campanha de prevenção do abuso e exploração sexual infantil, promovida pela "Childhood Brasil", para que de alguma forma também sirva como mais um alerta para outras famílias. Confiem nos seus filhos, observem eles, orientem, protejam. Busquem informação, aprendam a entender e reconhecer os sinais para se precaverem deste tipo de gente, porque, infelizmente, o mal pode estar em qualquer lugar. Qualquer lugar MESMO.


** Anônima é mãe de 3, foi vítima de pedofilia,
mas não consegue ainda mostrar o rosto em
público e falar “foi comigo”, mas quer muito
contribuir para que não aconteça o mesmo
com seus filhos, nem com os dos outros.

2 comentários:

Desconstruindo a Mãe disse...

Gente, depois desse site que denunciamos de apologia à pedofilia, ler esse texto me deixou ainda mais triste.

Um adulto que não chega a tocar uma criança, mas se masturba diante dela, como acontecia com um taxista na frente de nosso prédio, até hoje não esqueço. Eu travava. Com o tempo, as meninas se uniam, apedrejavam o táxi e chamavam as mães. Até que um dia, talvez movido pelo prejuízo na lataria do automóvel, o cidadão tenha sumido.

Esse homem é doente. Sinceramente torço pra que ele esteja queimando no quinto dos infernos e pra que minha filha nunca passe por uma situação intimidadora como a de ser seguida por uma pessoa dessas. Eu fui.

Adolescente e adulta também, mas quando procurei o posto policial o que ouvi foi desanimador: enquanto não encostar em você, não podemos fazer nada, é a palavra de um contra a de outro.

Então, se ele chegasse a encostar em mim, pra que lado eu olharia e pediria socorro?

A intimidação é o que dá poder a uma pessoa assim. No caso do pedófilo, muitas vezes não é apenas coação, é abuso da confiança que a incoente tem que faz com que ela aceite fazer o que os ditos mais maduros pedem que ela faça como rpova de afeto.

Passei a preferir passar por maluca e quando acho que posso estar diante de outro tarado desses, já sei: gritar por socorro faz as pessoas se afastarem. Eu digo FOOOOOGOOOOO e todos param pra olhar. isso surpreende o safado. Ou uma atitude que demonstre que não tenho medo também desarma um diabo desses.

Mas infelizmente, nem sempre estamos com o radar para o perigo ligado ou estamos mais vulneráveis quando temos filhos conosco e acabamos nos silenciamos. Não podemos continuar assim.

Parabéns por abordar esse tema. Desculpe tomar tanto espaço com meu comentário...

Um abraço,
Ingrid

Rogeria disse...

Este relato prova que essas coisas acontecem há muito tempo,mas só agora estamos tentando fazer alguma coisa...outro dia ouvi o relato de uma conhecida,ela dizia q nas festas de família tinha sempre um tio que dormia com as crianças,com a desculpa de cuidar delas chegava e fazia com elas o tocassem,ela disse que até hj isso ñ sai da cabeça...eu tbém protejo e muito os meus filhos,não dormem na casa de coleguinhas,ñ ficam sozinhos com adultos e ñ conversam com ninguém que ñ conheçam,prefiro q passem por mal educados a serem molestados,isso tem que acabar...ñ podemos sujeitar nossas crianças a tamanha violência...pior que como a anônima podem ter muitas pessoas que bloquearam as lembranças e tem problemas diversos que ñ sabem de onde vieram...força aí!!!