Como os Beatles influenciaram diretamente o axé e o carnaval da Bahia
Um bater de asas em Liverpool
provocou um tsunami no resto no mundo. A metáfora usada para
exemplificar a teoria do caos molda-se na força e influência dos
Beatles. Em abril de 2020, o mundo registra 50 anos do término da banda
britânica.
Nesse constante fluxo de inspiração dos anos 1960, a
onda gigantesca produzida pelo Fab Four arrebentou nas águas mornas da
baía de Todos os Santos. Em Salvador, onde as influências africanas
sobressaem na música, no canto e na dança, as inovações técnicas e
melódicas trazidas pelos Beatles modificaram os rumos do carnaval da
Bahia.
Ícone da Música Popular Brasileira, Gilberto Gil apazigua o
que poderia ser um princípio de polêmica. Não há, segundo o artista de
77 anos, uma disputa de protagonismo com as raízes africanas ao admitir
as contribuições indiretas de John, Paul, George e Ringo — um quarteto
de homens brancos, do norte da Inglaterra, cantando músicas em inglês —
na folia baiana, de formação afro-brasileira.
Em entrevista à BBC Brasil, Gil destaca a força da música negra nos próprios Beatles.
"Tudo
que veio de música urbana, da música jovem e transformou o mundo tem
uma forte influência dos Beatles. Os Beatles traziam um talento
extraordinário para a reprodução da canção melodiosa, com o ritmo
frenético do rock and roll. Eles traziam muito da coisa dos negros
americanos, de B.B. King e Little Richard. Eles fizeram esse trânsito
entre a música de raiz negra americana... Tinha tido o Elvis Presley
como primeiro agente internacionalizante desse movimento. Mas são os
Beatles os primeiros a fazer isso via Europa", diz.
O
compositor e pesquisador mineiro Tom Tavares enxerga na carga
hereditária o mais destacado translado da sonoridade inglesa para o
carnaval da Bahia. Em 2020, a fobica, que no futuro daria origem ao trio
elétrico, completa 70 anos de existência. A invenção veio pelas mãos de
Dodô Nascimento e Osmar Macedo, no carnaval de 1950.
Beatles em apresentação na BBC em 1966; influência
da banda britânica se estendeu para diversos estilos musicais
São eles os primeiros a eletrizar um carro (na época
um Ford, 1929) e adaptá-lo para tocar música. Os filhos de Osmar, mais
precisamente o guitarrista Armandinho, ainda bem rapazote no início dos
anos 1970, iria aderir aos elementos vanguardistas içados por Lennon e
McCartney.
"É uma questão geracional. Armandinho era um jovem
músico extremamente talentoso, que tocava o instrumento desenhado por
ele e construído por Dodô: a guitarra baiana. Nesta época, no carnaval
de Salvador, basicamente o que se tocavam eram sambas, as marchas
juninas e os frevos pernambucanos. Armandinho começa a tocar os rocks
que ele ouvia dos Beatles, dos Rolling Stones. Isso em cima do trio
elétrico", argumenta Tavares.
Hoje aos 66 anos, Armandinho ainda
lembra a sensação despertada ao ouvir os primeiros acordes dos Beatles.
"Tinha entre 12, 13, 14 anos. Aquilo foi me arrebatando. A sonoridade
era muito forte. Meu pai, no entanto, dizia que aquelas músicas não nos
representavam. Eu, então, incorporei a melodia deles, mas tentava trazer
pra nossa realidade. Puxar para o frevo, para o ijexá direto na
guitarra baiana", diz.
Outra inovação potente viria na formação
das bandas de apoio. Até então quem acompanhava os músicos em cima do
trio — naquela época, por limitações técnicas, não havia cantores,
apenas instrumentistas — eram tocadores de charanga e percussão. "Em
1974, comecei a substituir esse pessoal por guitarrista, baterista e
contrabaixista. E essa era exatamente a formação dos Beatles. Nós
estávamos revolucionando o carnaval, eletrizando ele, e os Beatles eram
nossa referência maior de modernidade", pontua.
Desde o ano passado, Armandinho apresenta no teatro o espetáculo Irmãos Macedo, Carnaval, Música e Revolução.
Na peça, ele e os irmãos André, Aroldo e Betinho contam como o trio
elétrico transformou o Carnaval da Bahia. Em uma das cenas, os quatro
emendam clássicos dos Beatles em sequência e, ao fim do pot-pourri com uma contraluz ao fundo, emulam a capa de Help (lançado em agosto de 1965).
Diretor
do espetáculo e produtor musical, Andrezão Simões explica a opção pela
cena. "Ali desenhamos uma homenagem desta influência da célula Beatles.
Dodô e Osmar são responsáveis pela MTB: Música Trieletrizada Brasileira.
As inovações técnicas que eles criaram permitiram abrir um elo com o
que de mais moderno estava sendo feito no mundo. É nesse momento que o
carnaval da Bahia encontra os Beatles, sinônimos de liberdade. Aqui em
Salvador, a guitarra baiana é a antena que capta esta transformação",
pontua.
Osmar Macedo e seus filhos em cima da sua criação: o trio elétrico. Armandinho com visual roqueiro
Tropicália e festa de bailes
Os
herdeiros de Macedo, no entanto, não são a única conexão entre
Liverpool e Salvador — duas cidades famosas, além da música, por antigos
portos comerciais. A Tropicália foi, em seus anos iniciais, fortemente
influenciada pelos Beatles.
Em 1966, o quarteto mudou a base musical com o lançamento do LP Revolver. O jornalista britânico Steve Turner, em seu livro Beatles 1966. O ano revolucionário
(editora Benvirá, 2018) escreve que, depois daquele ano, eles
"compunham músicas que exploravam sua psique e a natureza da sociedade,
além de com frequência serem considerados uma ameaça à ordem
estabelecida por governos ao redor do mundo".
Depois de Revolver, em junho de 1967, viria o conceitual Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band.
No fim de setembro e outubro daquele ano, Caetano e Gil se apresentavam
no Festival de MPB, da TV Record, lançando as bases do Tropicalismo.
Para
a reportagem da BBC News Brasil, Gil contou como os tropicalistas
beberam desta fonte e como isso foi respingar no carnaval de Salvador.
"Muito do nosso trabalho na Tropicália era diretamente influenciado por discos como Revolver, como Sgt Peppers.
Em 1969, fomos presos [pela Ditadura Militar] e depois exilados.
Tínhamos que ir embora. Nossa primeira parada foi Portugal. Depois,
fomos a Paris. Mas aí Paris era muito chato. Muito agressivo. Me lembro
de uma noite, depois de sermos maltratados e recusados em duas ou três
lanchonetes, a gente literalmente sentou na calçada e chorou. Aí, eu
disse: 'Vamos pra Londres, Caetano. Lá é a terra dos Beatles'. E não deu
outra. Aquele encontro psicodélico foi algo fantástico".
A capital inglesa vivia o Swinging London, movimento
efervescente nas artes visuais, música, moda e costumes. Antes de
partir para o exílio, Caetano Veloso deixou gravadas as bases do seu
segundo LP solo (o que tem Caetano Veloso escrito à mão sobre uma capa branca), que seria lançado em agosto de 1969. Entre as músicas estava Atrás do Trio Elétrico.
"Atrás do Trio Elétrico
é uma música inaugural dessa sonoridade moderna do trio. Você tem ali
Lanny Gordin (guitarrista) fazendo aquele solo extraordinário,
acompanhando Caetano. Ele, com todas as influências do rock, acabou
influenciando toda a nova maneira de sonorizar a música baiana. Isso vai
bater em Luiz Caldas, lá na axé music", diz Gil.
Considerado pai da axé music, movimento iniciado em 1985 com o lançamento do seu LP Fricote,
Luiz Caldas reconhece o tributo melodioso em Caetano, mas pontua as
músicas de baile como vínculo mais direto com os britânicos.
"Eu
comecei a tocar aos sete anos de idade. Tocava violão e, naturalmente,
migrei para a guitarra. Na música de baile você acaba tocando milhares
de coisas. Ticket to Ride e Yesterday, por exemplo, sempre estavam em meu repertório", relembra.
A
partir dos anos 1990, a axé music se tornaria um filão extremamente
lucrativo com cifras derramadas aos magotes no carnaval da Bahia. Viriam
as estrelas: Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Cláudia Leitte, Chiclete
com Banana, Asa de Águia, Carlinhos Brown.
"Todo mundo que foi
jovem nos anos 1960 e toca instrumento de corda tem nos dedos os
caminhos harmônicos dos Beatles. Mesmo que inconscientemente. Eles
trouxeram uma nova dimensão das músicas e essa linha melódica nunca foi
quebrada", diz o cantor Gerônimo Santana, autor de hits de ixejá como É D'Oxum.
"Luiz Caldas foi meu guitarrista. Ele tem Beatles no
seu jeito extraordinário de tocar. A grande questão é que Beatles foi,
para todos nós, um ponto de partida. Não de chegada. Dessa melodia
avançamos para a música negra, para os atabaques, para os sons
africanos, os ritmos caribenhos. Essas coisas foram se incorporando e
fazendo crescer o carnaval da Bahia como sonoridade marcante. Mas
bebemos, sim, nos Beatles. Todo mundo bebe do que é muito bom", reforça
Gerônimo.
Vai rolar a festa
Um
exemplo claro de como a axé music incorpora a qualidade musical da
banda mais famosa do mundo, revela o compositor Tom Tavares, é a
inspiração da música Vai Rolar a Festa, de 2001.
"A sequência harmônica dessa música é exatamente a mesma de Twist And Shout. Essa não é uma música dos Beatles, mas eles que a popularizaram quando lançaram no disco Please, Please Me (o primeiro deles, 1963). Vai Rolar a Festa
consegue reproduzir essa mesma sequência harmônica. É um plágio? Claro
que não. Mas é uma inspiração direta, sem dúvidas", afirma.
A canção Twist and Shout alcançou novas gerações, ao figurar na trilha sonora de um clássico da década de 1980: Curtindo a Vida Adoidado.
Por conta do filme estrelado por Matthew Broderick, a música voltou às
paradas de sucesso 23 anos depois da primeira gravação dos Beatles.
Já Vai rolar a festa, composta por Anderson Cunha e gravada por Ivete Sangalo, embalou a conquista do pentacampeonato da Seleção Brasileira em 2002.
Na
letra da música, uma estrofe entrega a relação direta do rock com o
batuque negro, que sintetiza o carnaval da Bahia. "Pode vir, pode
chegar. Misturando o mundo inteiro. Vamos ver no que é que dá. Tem gente
de toda cor. Tem raça de toda fé. Tem guitarras de Rock 'n Roll.
Batuque de Candomblé (...) Vai rolar a festa. Vai rolar..." (BBC News Brasil)
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