Iemanjá tem cor? Por que a divindade de origem africana se transformou em 'mulher branca' no Brasil
"Dois de Fevereiro, dia da Rainha /
Que pra uns é branca, pra nóiz é pretinha", canta Emicida, na música
'Baiana', lançada em 2015, em referência à Iemanjá, divindade cultuada
no Brasil como Rainha do mar.
Quase seis décadas depois de o
baiano Dorival Caymmi gravar Dois de Fevereiro anunciando querer "ser o
primeiro a saudar Iemanjá" na tradicional festa realizada anualmente na
orla de Salvador e em dezenas de outras cidades do país, o rapper
paulista celebrou a data trazendo para a música o debate que tem
crescido nos terreiros de candomblé e umbanda: qual a cor dessa
divindade que chegou ao Brasil com as religiões de negros escravizados,
mas passou a ser predominantemente representada aqui como uma mulher
branca, magra, de cabelos lisos, em um vestido azul?
Para
historiadores e seguidores das religiões afrobrasileiras ouvidos pela
BBC News Brasil, o que aconteceu com a representação de Iemanjá — orixá
associado a rios e mares, símbolo da fertilidade, e que originalmente
não era reverenciado em uma forma humana — foi um processo similar ao
embranquecimento da imagem de Jesus Cristo.
O
Jesus histórico, um homem que viveu há dois milênios no Oriente médio,
muito provavelmente era moreno, baixinho e mantinha os cabelos aparados,
como os outros judeus de sua época, acreditam especialistas.
No entanto, a imagem que se sobrepôs ao longo dos séculos de dominação
política e cultural europeia ao redor do mundo é de um homem de pele
clara, barbudo, de longo cabelo castanho claro e olhos azuis.
Da
mesma forma, entende Helena Theodoro, pesquisadora em história
comparada da UFRJ, a imagem de Iemanjá branca tem raízes no processo de
colonização do Brasil, que impôs uma visão de superioridade europeia
sobre os povos indígenas e africanos. "Houve uma demonização das
religiões negras e indígenas a partir do que a Europa situou como sendo
civilizado, humano. Nesse contexto, o humano é europeu, branco de olho
azul", nota ela.
Essa dinâmica, continua Theodoro, provocou um
processo de sincretismo religioso em que os escravos e seus descendentes
aproveitavam as datas de festejos de santos católicos para cultuar seus
orixás, usando inclusive imagens desses santos. Iemanjá, mãe de grande
parte dos orixás, foi sincretizada com várias santas, como Nossa Senhora
das Candeias e Nossa Senhora dos Navegantes, ambas celebradas em 2 de
fevereiro, e Virgem Maria, a mãe de Jesus.
"Foi uma grande luta de
Mãe Estela de Oxossi, (falecida em 2018, por décadas ialorixá) do
terreiro Ilê Axé Opó Afonjá, que se tirasse as imagens de santo do
candomblé. Durante um determinado período isso era necessário porque a
gente não podia excercer o nosso culto", lembra Theodoro.
A
massificação da imagem de Iemanjá branca, representada em estátuas de
gesso, porém, ocorre com o surgimento da umbanda, no início do século
passado. Essa religião aprofundou o sincretismo no Brasil, unindo
elementos do espiritismo, do cristianismo, do candomblé e também de
culturas indígenas.
"Essa imagem de Iemanjá, como mulher branca,
nasceu, muito provavelmente, no ambiente da umbanda, uma religião
sincrética, surgida num contexto de 'desafricanização' da cultura
afrobrasileira", respondeu por email à BBC News Brasil o cantor Nei
Lopes, estudioso das culturas africanas e autor de diversos livros como
"Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africanos".
"Mesmo
porque as modalidades de culto (de matriz africana) mais tradicionais
não representam as divindades em forma humana, pois elas são, sobretudo,
energias, forças cósmicas", ressalta ainda Lopes.
Orixá não tem cor?
Como
explica o portal do Museu Afro Brasil, a escravidão de negros, regime
de exploração que perdurou no Brasil por mais de três séculos até ser
abolido em 1888, "colocou em contato as religiões de diferentes povos
africanos, que acabaram por assimilar e trocar entre si elementos
semelhantes de suas culturas". Foi nessa mistura que se formaram as
religiões afro-brasileiras.
O candomblé "não é um único culto
religioso, mas antes uma série de cultos estreitamente aparentados",
nota ainda o site. Suas divindades levam os nomes de orixás, inquices e
voduns, de acordo com o povo de origem, se ioruba, banto ou jeje,
respectivamente. No Brasil, as três formas estão presentes, mas a
nomenclatura orixá é que a mais se popularizou.
Diferentemente de
Jesus Cristo, descrito no catolicismo como uma encarnação humana de
Deus, Iemanjá representa no candomblé uma força da natureza, uma
energia. Nesse sentido, o orixá não tem uma cor de pele. Para a
historiadora e candomblecista Carolina Rocha, porém, é importante
afirmar a negritude de Iemanjá. Segundo ela, representá-la como branca
faz parte de um processo de "epistemicídio", conceito usado pelo
sociólogo português Boaventura de Sousa Santos para se referir à
destruição ou inferiorização de conhecimentos, saberes e culturas pelo
colonialismo.
"Todas as entidades, símbolos, forças que são
cultuadas, apesar de nao terem tido um existência humana propriamente
dita, elas têm um origem, têm uma história", afirma a pesquisadora, que
está concluindo um doutorado sobre conflitos religiosos contemporâneos
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Rocha — que em sua
casa tem um quadro de uma Iemanjá negra da artista plastica Valeria
Felipe — questiona não só a cor, mas todo a "estética ocidental"
presente na imagem mais popular da entidade como uma mulher "super
magra, de cabelos lisos". Ela lembra que Iemanjá, assim como outros
orixás femininos (yabás) relacionados à água como Oxum e Nanã,
representa a fertilidade, a abundância e a transmissão de conhecimento.
"Em termos de religião negra africana, Iemanjá, obviamente, além
de ser uma mulher negra, é uma mulher de seios muito fartos, de quadris
largos, isso também passa pela prosperidade feminina, pelo símbolo de
fertilidade. Então, há um completo apagamento do que significa esse
símbolo nessa imagem branca com barriga chapada", crítica.
"É algo
muito cruel essa imagem que tem uma capilarização no tecido social
imensa e nega uma origem, num projeto de racismo em que a padrão
ocidental branco é colocado como o bonito. Parece bobagem falar de
estética, mas não é, porque na verdade você está falando de autoestima e
sem autoestima você não é nada", reforça.
Resistências ao debate
Carolina
Rocha diz que hoje "existe um debate enorme dentro das religiões de
matriz africana" sobre a representação da divindade, mas reconhece que
"muitas casas (de candomblé e umbanda) não refletem sobre isso".
Em
Cidreira, no litoral do Rio Grande do Sul, uma grande procissão em
homenagem a Iemanjá e a à Nossa Senhora de Candeias ocorre anualmente na
noite de 1º de fevereiro até uma estátua de mais de oito metros de uma
mulher branca, de vestido azul e adorno com estrela sobre os cabelos
negros escorridos.
"Nossa procissão é a maior do país, reúne em
torno de 40 mil, 50 mil pessoas", afirma o presidente da Federação Afro
Umbandista e Espiritualista do Rio Grande do Sul (Fauers), Everton
Alfonsin.
Questionado pela reportagem sobre como refletia sobre
representação branca de uma divindade com origem africana, Alfonsin
também lembrou que os escravizados recorriam às imagens e datas festivas
católicas para cultuar seus orixás e reconheceu que houve racismo nesse
processo. Ele disse, porém, não ver necessidade de uma revisão disso
dentro da umbanda.
"A estátua em Cidreira representa Iemanjá
sincretizada com Nossa Senhora dos Navegantes, não tem nada a ver com a
Iemanjá de matriz africana", argumentou, destacando ainda que a
divindade não é chamada de orixá na umbanda, mas de caboclo.
Um
dos organizadores da procissão à Iemanjá que tradicionalmente parte do
Mercadão de Madureira, na Zona Norte do Rio de Janeiro, até Cobacabana,
dias antes do reveillon, congregando pessoas de diferentes credos, Hélio
Sillman não vê racismo na representação branca da entidade. Ele, que
gerencia a loja Mundo dos Orixás, diz que é "católico, com um pezinho na
umbanda".
"Essa discussão não leva a lugar nenhum, se é branco, se é negro, se é isso, se é aquilo. É criar um problema sem ter", diz.
O
evento realizado há 17 anos ocorreu apenas dentro do mercadão pela
primeira vez em 2019. Segundo Sillman, a prefeitura do Rio não liberou
um alvará para a carreata. A cidade é governada pelo evangélico Marcelo
Crivella.
"Convencimento deve vir pela educação"
Pesquisador
da afrobaianidade e professor da Universidade do Estado da Bahia
(Uneb), Gildeci Leite diz que o debate sobre a cor de Iemanjá está vivo
nos terreiros baianos, mas ressalta que ainda hoje predomina a
representação branca da entidade na tradicional festa de dois de
fevereiro na praia do Rio Vermelho, em Salvador, proporcionalmente a
capital mais negra do Brasil.
Numa das pontas dessa praia, há uma
estátua da yabá com calda de sereia esculpida em uma pedra de cor clara.
Ela está em frente a uma casa dedicada à divindade que abriga uma
espécie de altar em que uma grande Iemanjá branca fica rodeada por
flores e representações menores de variados tipos, inclusive algumas
esculturas negras.
Leite considera fundamental problematizar a
atual representação do orixá, mas defende que isso seja feito com
respeito às outras representações, de forma devagar. "Eu penso que
Iemanjá tem que ter representação negra, mas pra isso eu não preciso
depreciar outras representações. Até porque isso tem que ser um processo
de educação, de convencimento com encantamento, não com opressão. Já
fomos oprimidos demais", afirma.
"Minha mãe biológica ainda
associa Iemanjá com Nossa senhora da Conceição. E eu vou dizer que está
errado? Não, porque isso é um processo de construção. Já os meus filhos
biológicos sabem que Iemanjá é Iemanjá e Nossa Senhora da Conceição é
Nossa Senhora da Conceição e que ambas merecem respeito", diz ainda.(BBC News Brasil)
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