Os comissários da Varig que 'contrabandeavam' remédios para ajudar pacientes com Aids
Em 1989, Rogério* vivia seu melhor
momento: 30 e poucos anos, viagens ao exterior como comissário de bordo,
salário acima da média. Tinha acabado de comprar um carro e um
apartamento em Copacabana. "Eu estava curtindo a vida, muito feliz. Até
que veio o baque", conta.
Inicialmente, essa queda foi também
literal: um dia, depois de um treino na academia, Rogério desmaiou —
isso nunca tinha ocorrido. Um amigo o aconselhou: não seria bom fazer
uns exames? "Quando fui buscar os resultados, o laboratório ficou com
medo da minha reação e se recusou a entregar o documento. Logo
desconfiei da resposta", conta. Ele tinha HIV.
Rogério já
conhecia pacientes com Aids, a síndrome causada pelo vírus. "Eu sabia
que o resultado era um atestado de morte. Muitos dos meus amigos estavam
morrendo", conta ele, hoje com 67 anos.
Desde 1976, ele
trabalhava na Varig, então maior companhia aérea brasileira — e que
faliu em 2006. Antes de descobrir o HIV, Rogério fez parte de uma rede
de solidariedade de funcionários da empresa que ajudou centenas de
pessoas com o vírus enquanto os medicamentos não eram acessíveis no
Brasil.
Os comissários da companhia levavam receitas para o
exterior — principalmente para os Estados Unidos —, onde compravam ou
conseguiam os remédios por meio de doações. Depois, traziam as drogas
para o país em voos da empresa.
Como
os comissários e tripulantes não precisavam passar pela alfândega, os
comprimidos entravam livremente no Brasil — em tese, como eles não eram
registrados ou comercializados no país, o sistema era uma espécie de
"contrabando do bem".
Segundo ex-funcionários, servidores dos
aeroportos sabiam da importação, mas, diante da gravidade da epidemia,
deixavam o material passar pelas barreiras alfandegárias sem problemas.
Os
medicamentos então eram entregues na sede da companhia, no Rio. "Havia
até uma janelinha onde as pessoas pegavam as caixas. Era um sistema
muito competente: em 48 horas o paciente conseguia o medicamento", conta
Mario Augusto dos Santos Filho, 78, ex-chefe dos comissários de voos
internacionais da Varig.
Segundo ele, o serviço voluntário e
gratuito durou do final dos anos 1980 até pelo menos 1996, quando o
Congresso aprovou a lei que garante o acesso universal ao tratamento no
Sistema Único de Saúde (SUS).
'Por solidariedade'
A
importação de comprimidos, porém, não começou com a Aids. Antes do
início da epidemia, no começo dos anos 1980, comissários já usavam voos
internacionais da Varig para fornecer medicamentos para outras doenças,
como câncer.
"Às vezes, o remédio não existia por aqui ou custava
uns US$ 5 mil. A gente comprava mais barato em farmácias de Nova York,
Paris, Roma, e trazia para cá. Tudo era feito por solidariedade, sem
ganho financeiro", conta Mario Augusto, que, antes de virar chefe, atuou
por décadas como comissário em voos internacionais.
Ele conta uma
história curiosa desse período: "Uma vez, uma mulher famosa, e não vou
te dizer o nome dela, precisava fazer um exame para confirmar se ainda
estava com câncer. Então, ela me deu um recipiente com amostras de
sangue. Levei para os Estados Unidos e, dias depois, trouxe o resultado:
ela não tinha mais a doença."
Mario Augusto dos Santos Filho, ex-comissário da Varig, era um dos funcionários que importavam remédios para pacientes com Aids
Nessa época, funcionários da Varig também foram
afetados pela Aids. Segundo Mauro Augusto, cerca de 45 comissários
morreram em poucos anos, o que alarmou a empresa e os trabalhadores.
Por
outro lado, havia denúncias de que funcionários infectados eram
discriminados e até demitidos — a empresa sempre negou. Em 1989, grupos
de ativistas protestaram em frente à sede, no Rio. Há pelo menos um caso
conhecido em que a Varig foi condenada pela Justiça a indenizar um
ex-trabalhador que foi demitido por ter HIV.
O ex-comissário
Alexandre Santos Silva, 61, lembra que temeu perder o emprego quando
descobriu ter HIV, em fevereiro de 1992. "Tive colegas que foram
demitidos, mas obviamente a justificativa não era o vírus. A empresa
afirmava que a demissão era por questões de competência", diz.
Ele
conta que consultou um advogado, que o orientou a enviar uma carta aos
diretores informando a situação — caso ele fosse demitido, poderia
acionar a Justiça alegando ter sido discriminado. "Também colei um
cartaz no mural da sede, contando para todos os meus colegas que eu
tinha HIV", afirma.
Ainda assim, ele foi afastado do trabalho no
mesmo dia e nunca mais voltou — continuou, porém, tendo acesso ao
salário e ao serviço de médicos da Varig. "Havia médicos e psicólogos
muito bons na empresa. Fui tratado por eles de maneira muito atenciosa",
conta.
Anos depois, Alexandre foi aposentado por invalidez.
'Sentença de morte'
O ex-comissário Alexandre Santos Silva se aposentou por invalidez
Quem descobria ter HIV naquela época, além de
possuir uma "sentença de morte", enfrentava preconceitos e estigmas. Por
muito tempo, de forma equivocada, a Aids foi associada à comunidade
LGBT, com a alcunha de "peste gay".
Alexandre Santos Silva conta,
por exemplo, que perdeu boa parte dos amigos para o preconceito. "Todo
mundo desapareceu. Meus amigos se escondiam quando me viam na rua. No
meu prédio, as pessoas saíam do elevador quando eu entrava", diz.
Conseguir
tratamento também era tarefa dificílima, pois, por alguns anos, não
havia medicamentos que tratassem essa condição — e sim apenas os males
chamados de "oportunistas", como diarreias e infecções. Milhares de
pessoas contraíam o vírus, desenvolviam a doença e morriam rapidamente.
"Não
tinha como tratar, pois os remédios não existiam aqui. Precisava
importar e a maioria das pessoas não tinha dinheiro", conta Márcia
Rachid, médica infectologista e uma das fundadoras do Grupo Pela Vidda,
que ainda hoje trabalha com pessoas com o vírus. "Em 1989, quando surgiu
o AZT (primeira droga que demonstrou eficácia no tratamento da Aids), o
Ministério da Saúde enviava pouquíssimas unidades para os hospitais",
diz.
Na Varig, os funcionários decidiram buscar os remédios no exterior para tratar os colegas doentes.
Rogério
conta que por mais de um ano importou suprimentos para um amigo, que
depois morreu. "Era uma situação terrível. Lembro que eu tinha uma
agenda de telefones que tinha mais gente morta do que viva", conta.
Inicialmente, os remédios para a Aids tratavam apenas da doença, e não do vírus
Pacientes de fora ficaram sabendo da rede de
solidariedade e passaram a contatar os comissários, afirma Mario
Augusto. "Eu conseguia os remédios em duas farmácias de Manhattan.
Muitas vezes, os farmacêuticos doavam as caixas para nós. Por anos,
esses dois farmacêuticos ajudaram muita gente no Brasil", diz.
Veriano
Terto Júnior, vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar
de Aids (Abia), resume o que significava conseguir se tratar naqueles
tempos. "A gente tende a esquecer essa história, mas as pessoas faziam
qualquer coisa pelos remédios. Era um luta e uma questão de vida ou
morte", diz ele, que trabalha com pacientes desde os anos 1980.
'Não vou te dizer que tirei de letra'
Rogério
participou dos dois lados dessa história: primeiro, forneceu tratamento
para os outros, mas, depois, acabou ajudado pelos colegas de Varig —
recebeu caixas importadas por quase dois anos.
Ele escondeu ter
HIV por quatro anos. Até que um dia passou mal enquanto viajava, e o
médico da empresa lhe pediu exames. "Eu fugi do tratamento por muito
tempo, mas depois não teve jeito, porque fiquei muito mal", conta.
Rogério
chegou a pesar 35 quilos — seu peso normal era 65. "Não vou te dizer
que tirei de letra (o HIV), porque não foi fácil. Sofri muito, fiquei
muito doente. Isso sem contar o preconceito que um soropositivo sofre.
Um dia revelei que tinha HIV para meu dentista, e ele simplesmente disse
que não iria mais me atender. Era esse tipo de coisa que a gente
enfrentava", diz.
Ele foi afastado do trabalho por dois anos e,
depois, aposentou-se por invalidez. O que parecia um benefício, porém,
hoje atrapalha Rogério. Ele não pode ter outro serviço remunerado e,
apenas com a renda da Previdência, precisou vender seu apartamento em
Copacabana. Hoje, vive no aperto.
Por outro lado, o tratamento
tornou seu HIV indetectável. Ou seja, a carga viral em circulação em seu
sangue é baixíssima — nesses casos, o vírus não chega às secreções
genitais e perde a capacidade de transmissão por relações sexuais.
"Posso dizer que sou um sobrevivente", afirma.
Mortalidade e infecção
Depois de alguns anos, a importação informal da
Varig deixou de ser necessária. Em meados dos anos 1990, o Brasil passou
a comprar os medicamentos, embora eles não estivessem acessíveis a
todos.
Uma enxurrada de ações judiciais pedindo que o SUS bancasse
o tratamento levou o Congresso a aprovar, em 1996, a Lei 9.313, que
garante a distribuição gratuita dos remédios.
Naquele ano, houve
outro avanço: o tratamento para HIV/Aids era focado no momento em que a
doença já tinha se desenvolvido. Porém, estudos mostraram que o HIV não
tinha latência — ou seja, ele agredia o corpo o tempo todo.
Foi
então que surgiram os chamados coquetéis antirretrovirais, conjunto de
medicamentos que atacam o ciclo de vida do vírus, antes mesmo do
desenvolvimento da doença. "O AZT sozinho não funcionava. O tratamento
passou a dar certo quando descobrimos que era preciso associar pelo
menos três remédios para o vírus", diz a infectologista Márcia Rachid.
As
políticas públicas do Estado brasileiro, que chegou a quebrar uma
patente para garantir o fornecimento de remédios, deram resultado: uma
pesquisa recente do Ministério da Saúde, por exemplo, apontou que 70%
dos adultos e 87% das crianças diagnosticadas entre 2003 e 2007 tiveram
sobrevida superior a 12 anos. Em 1996, antes da oferta de tratamento,
esse tempo era estimado em cinco anos.
Por outro lado, o Brasil
registrou uma alta de 21% no número de novas infecções entre 2010 e
2018, segundo o Programa Conjunto da ONU para HIV/Aids, o Unaids.
Especialistas argumentam que essa alta de diagnósticos pode ter ocorrido
também por causa da ampliação da testagem no país.
Para Ricardo
Diaz, professor de infectologia da Universidade Federal de São Paulo, a
reação do Brasil à epidemia é uma referência mundial. "Nossa resposta
foi rápida e inovadora. O tratamento pelo SUS atinge 100% das pessoas
que descobrem o vírus, o que acaba sendo uma maneira de prevenção, pois
impede que ele se espalhe mais. Os Estados Unidos, por exemplo, tratam
apenas 50%", diz.
Mas Diaz cita alguns gargalos. "Conforme o
número de infecções aumenta, como a gente mantém esse acesso? A conta
fica mais alta, mais cara. Outro ponto é que ainda há uma dificuldade
maior de manter o tratamento na parcela mais vulnerável da população",
diz.
Já Márcia Rachid cita o velho estigma como um fator que ainda
atrapalha. "Há pessoas que são mais vulneráveis ou vulnerabilizadas
pelos outros: gays, travestis, transexuais. O preconceito, às vezes até
da família, ainda afasta muita gente do diagnóstico e até do
tratamento", diz.
"Quando você abandona um tratamento eficaz,
você está optando pela morte. Então, o principal gargalo do HIV e da
Aids no Brasil continua sendo o preconceito." *O nome do ex-comissário da Varig foi alterado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário