Palavras ao vento Por Hugo A. Bittencourt
Carvalho |
*A Sina do Paraíso*
Tudo começou
com um ofídio encantador.
Tragédia que redundou na decretação do suor, para sobrevivermos em ambiente
hostil, nus, desabrigados, perene luta contra as intempéries, em disputa
pela sobrevivência dia-a-dia, ombro-a-ombro, contra animais de bruta raça. Nada
a ver com o propagado paraíso.
Ainda sequer falávamos - de urros em urros, de murros em murros, irmãos em contenda -, após a ofídica sedução, chegamos à segunda grande tragédia: o fratricídio. De lá para cá, nada mais vimos, nem vivemos, não seja versão repaginada de indescritíveis tormentos.
Fratricídios, elevados a
incalculável potência, genocídios camuflados sob os mais variados títulos.
Humanos a matar humanos, sem sentimento de culpa, com a maior
naturalidade. A dramática peste, sempre
enfrentada pelos filhos de Eva, presente no caminhar do mundo.
Em meio a tudo isso, outras pragas a abreviar vidas. Pestes de todos os gêneros, foices vorazes, contra os que veem na morte o portal de nova vida, quanto os que, mesmo sem banalizar nossa finitude, entendem ser ledo engano a crença em outra existência. Fraterna ou eterna, como queiram.
Aqueles, os crentes, espraiados mundo
afora, encaram o sofrimento como purgação de faltas pretéritas, nada originais,
confiantes no raiar de nova aurora ao cerrarem olhos em definitivo, mais isso,
mais aquilo. Confortadora ilusão, a história mostra com todas as letras, o
rodar da vida é ser sempre mais do mesmo. Mudam-se denominações,
trocam-se atores, modifica-se a linguagem, mas o espetáculo é regido pelo mesmo
script.
Ontem, nossos ancestrais; hoje, nós; amanhã, nossos filhos. Sempre na vã esperança do progresso redundar em reações distintas às havidas, seja ao encantamento do ofídio, seja à incontida praga fratricida.
A cada peste infestadora, idealizam-se propósitos de fraternidade. Os homens, todavia, recusam debruçar-se sobre a historicidade dos eventos. Marchamos em círculos no dramático espetáculo da paixão de sempre, associado à indisfarçada disputa de vaidades, a mostrar sua cara a cada passo na direção do sonhado reencontro com o paraíso perdido, salvação da humanidade.
Que salvação é essa, se daqui a alguns bilhões de anos o deus Sol poderá implodir em fantástico e formidável cogumelo de superbomba sideral, cremação geral?
Quem lembrará, então, de Adão e da fruta proibida, bem como da sedutora e desnuda Eva, encoberta por seus cabelos, com a qual a serpente negociara todo conhecimento do mundo?
Que dizer-se de Caim, o primeiro assassino em tempos sem supremos tribunais, sem primeiras, segundas e outras tantas instâncias, devidas ou indevidas, nascidas das próprias fraquezas da natureza humana?
Soem trombetas, rufem tambores, anuncie-se o ‘novo normal’ pós-pandemia, peste nova no nome, velha em efeitos.
Homens da medicina, queimem pálpebras na busca da poção mágica ao perseguido milagre da salvação.
Homens da cultura, entorpecidos e inspirados pelas dores da coletividade, versejem este macabro espetáculo da tragédia universal, teçam lacrimosas loas ao fogaréu a arder mundo afora. Incêndio purificador de ares e depurador de males do qual, além de palavras de consolo, espera-se inspire novas metáforas, outros gestos em escorreita prosa ou novos versos.
Conscientes, pés ao chão, vencida a pandemia, tirante nos abrigarmos na beleza do sonhar com a eterna felicidade, nada mais haverá quando do esperado renascimento, diverso da reedição do negociar com a serpente ou de irmãos a matar irmãos, quando muito por um nada.
Certamente a minha, como muitas outras gerações, anos aos milhões, não mais estaremos aqui para testemunhar diverso viver no paraíso.
Do paraíso, eis a sina.
Embaixo assino.
Hugo A de Bittencourt
Carvalho
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