* As velhinhas *
Era
quadro de página arrancada de livros de antigamente.
Anos sessenta do
século 20.
Uma pequena e velha cidade. Daquelas típicas de cartões-postais, transbordantes de saudades, lotados de miudinhas letras para muito dizer em espaço pouco.
Uma construção térrea, de esquina, vestida de rosa-bonina, recuada e arrodeada por belo gradil verde-patrimônio. No terreno, entre o imóvel secular com seus envidraçados janelões e portadas envernizadas, e as grades, vislumbrava-se o roseiral florido dando um toque poético ao conjunto. À beira das calçadas, plátanos, bem próximos uns dos outros, eram a pedra de toque artística do inesquecível quadro.
Ali não se conversava,
sussurrava-se.
A paz silenciosa
reinante impunha falares murmurados.
No interior, lado a lado de extenso corredor, os quartos. Numa das extremidades a cozinha e o amplo e iluminado refeitório; na outra, a capela. Missas diárias.
O assoalho, largas
tábuas enceradas a capricho, manifestava-se com inconfundíveis estalidos, mesmo
ao pisar lento e empantufado dos moradores.
Em cada dormitório, viam-se duas camas, duas mesinhas de cabeceira, duas cadeiras, um roupeiro e, aos pés de um crucifixo à parede, uma mesa. Nas laterais do guarda-roupas, fotografias de familiares vistas e revistas com a precisão de quem deita e acorda todos os dias.
Freiras, muitas, vestidas de preto-noite com reluzente peitoril branco, engomado. Eram as cuidadoras dos residentes daquela acolhedora casa, abrigo de idosas. Ali, em troca da pensão mensal pela viuvez, as freiras tudo faziam – da cozinha ao jardim, do acolhimento à partida – proporcionavam alimentação, assistência médica, assistência espiritual e até, chegado o momento, as providências para as exéquias.
A maioria, avançada nos anos, parecia ter sido esquecida pelo tempo. Gente que gerou filhos, netos, bisnetos, e belo dia, apercebeu-se haver ficado sozinha. Seus descendentes saíram mundo afora. Para cidades distantes, outros estados, até.
Ponto de contato com o
exterior?
Apenas o endereço de parente mais próximo, registrado na secretaria, para eventuais emergências. Foram mulheres não dispostas a dar as costas ao passado e decidiram ao morrer, fazer companhia a seus queridos velhinhos.
Em um dos quartos viviam duas velhinhas. Solitárias e solidárias. Alda e Maria, ambas octogenárias. Muita esperança, pouco espaço, pouca roupa.
Amigas desde sempre, enviuvaram quase ao mesmo tempo, anos atrás.
Parentes?
Distantes.
Visitas?
Raríssimas, uma ou outra amiga dos tempos da mocidade.
Sapatos?
Um par, apenas. O suficiente para quem nunca vai à rua. O bastante para a derradeira viagem.
Cartas?
Uma ou outra, de uma ou outra filha, de um ou outro neto.
Orações?
Dia e noite, noite e dia, um desfiar de rosários, repetido, repetido, repetido.
Então, Maria e Alda dividiam o mesmo quarto, o mesmo roupeiro, o mesmo espelho, a mesma comida, as mesmas orações, a mesma melancolia.
Vestiam-se com desapego. Quase sempre, um chambre longo, pantufas aos pés e trunfa à cabeça. Trunfa, da qual alguns teimosos fios de cabelo escapam, atestado dos incontáveis invernos vividos.
Alda, habitualmente sentava-se à beira da cama, calada; sua vida resumia-se em molhar as faces com infindáveis lágrimas.
Maria, embora loquaz, em dados momentos recolhia-se em si mesma, acomodava-se quietinha à cadeira ao lado de sua cama, mãos ao colo, mirava o assoalho como se visse algo através do mesmo. Comportava-se como se não tivesse direito a ali estar, permanecendo, apenas, no aguardo da hora de reencontrar seu bem-amado. Ensimesmada, silenciosa, pensativa. Vez em quando, levantava o olhar e arremetia um quase sorriso em direção à sua companheira. Esta, devolvia-lhe um molhado suspiro, arrancado das profundezas da alma.
Tal era o mundo delas: pensar nos seus, lembranças e saudade de maridos, filhos e netos cujas fotos coladas às portas do roupeiro, transportava-os para junto delas.
Esquecidas por todos, só saiam um dia por ano. Era quando serviam-se do par de sapatos. Quando? Em Finados, sol a pino, protegidas por sombrinhas, abraçadas, amparando-se uma à outra, para visitar o futuro “eterno aposento” delas com seus respectivos companheiros.
A partir de dado momento, Maria, pouco mais velha que Alda, passou a conviver com preocupante quadro de saúde. Aproximava-se o dia da partida.
Maria fora mãe de única filha da qual resultaram dois netos. As freiras enviaram comunicado urgente à mesma, a qual chegou a tempo de colher o último suspiro.
A filha, a amiga Alda, algumas outras moradoras do asilo, uma das irmãs de caridade e o padre Capelão formaram o cortejo de Maria à morada de seu amado velho.
Alda seguiu chorando, sozinha, por alguns anos.
Dias depois do féretro, um dos distantes netos, recebeu carta dando conta da morte de sua avó, já bem velhinha.
Verti as lágrimas que tinha.
Adeus, Maria! Comadre minha,
Minha avó e minha madrinha.
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