terça-feira, 23 de abril de 2024

Os códigos 'secretos' da alquimia escondidos em disco de Jorge Ben Jor


 Jorge Ben Jor teria visto o namorado da viúva uma única vez na vida.

Foi perto do Natal de 1973, em um quarto isolado da casa mais antiga de Paris, durante um almoço com Gilberto Gil.

Não foi um acontecimento trivial – nem para ele nem para a música brasileira. Ao contrário, era quase um encontro marcado, já que Ben Jor (então apenas Jorge Ben - o cantor mudaria de nome no final dos anos 1980) esticara, de propósito, uma viagem iniciada em Cannes, na costa da França, onde integrara a comitiva do Brasil no festival Midem daquele ano.

Ele queria levar Gil – que estava compondo as canções do disco Refazenda, de 1975 – para conhecer o lugar onde, segundo o boca a boca, um pequeno grupo de alquimistas se encontrava secretamente. Era nos fundos do Auberge Nicolas Flamel – um restaurante de uma única porta em uma construção de meados de 1400 escondida em uma viela não tão longe da catedral de Notre Dame.

Depois de comerem, Ben Jor puxou Gil para andar pela casa, cujo primeiro dono foi um rico vendedor de livros chamado Nicolas Flamel – que também era um alquimista famoso na sua época. Em dado momento, sozinhos em uma sala distante do salão, ambos foram surpreendidos.

"Vimos uma coisa lá", contou o cantor e compositor carioca em uma entrevista ao repórter Pedro Alexandre Sanches, então na revista Trip, em 2009. "O Gil viu também. Nós vimos alguma coisa. Mas bonita, não feia. Uma coisa bonita", completou.

Seis meses depois daquela visão, em maio de 1974, Jorge Ben Jor lançaria no Brasil e na mesma França seu disco preferido da carreira e, quiçá, o mais cultuado dos 38 que ele fez desde os anos 1960: A Tábua de Esmeralda.

O álbum, que completa 50 anos em maio, deu à música brasileira um objeto inédito: a alquimia.

No limite, A Tábua de Esmeralda é uma espécie de compêndio, quase um tratado musicalizado para alçá-la ao patamar de arte e de filosofia ao mesmo tempo, seguindo sempre uma interpretação autêntica dela feita por Jorge Ben Jor.

Praticamente todas as 12 canções do disco se tornaram populares, e algumas subiram ao panteão cultural do país, como Os Alquimistas Estão ChegandoOs AlquimistasZumbiMagnólia e O Namorado da Viúva.

Mais de uma década depois daquela entrevista à Trip, a jornalista Kamille Viola, da Veja Rio, conseguiu conversar com Ben Jor, por telefone, para um projeto do Google sobre Gilberto Gil. Foi em 2020.

Ainda com a história da visão de Paris na cabeça, ela aproveitou para perguntá-lo outra vez sobre o que ele e o amigo baiano haviam visto. Então, quase meio século depois do episódio na casa de Flamel, Jorge abriu o jogo.

"Ele me contou que ambos viram um grupo de pessoas com roupas do século 15 na porta da sala. Era um grupo de alquimia", revela ela à BBC News Brasil.

"Foi uma visão mesmo, porque, embora o restaurante seja um ponto de encontro de alquimistas até hoje, aquele não era um dia de reunião", continua ela.

Depois dessa conversa, um pedaço da extensa pesquisa que a jornalista estava fazendo, Viola publicou o livro África Brasil: Um Dia Jorge Ben Voou para Toda a Gente Ver (Sesc, 2020).

Uma das pessoas que Ben Jor e Gil teriam "visto" era, justamente, o namorado da viúva – ou Nicolas Flamel.

É uma possível explicação, inclusive, para o fato de a canção começar com um eu-lírico surpreso, repetindo sílabas como alguém que se vê diante de algo sobrenatural ("Na-mo-mo-ra-ra-do da viúva...").

"Foi também o jeito que Jorge Ben encontrou para contar uma história muito popular da época", explica a professora Susana de Andrade, que categorizou os campos de referências de A Tábua de Esmeralda em um artigo científico publicado em 2018.

A história é que, certo dia, Flamel recebeu em sua casa (onde hoje funciona o restaurante visitado por Ben e Gil) uma mulher chamada Perenelle – que havia enviuvado de dois maridos diferentes. Inicialmente procurando pelos serviços que ele oferecia como escrivão, os dois acabaram se tornando namorados.

Quando, tempos depois, ela se casou com Nicolas, inclusive assumindo seu sobrenome, correu à boca do povo que ele teria o mesmo destino dos esposos anteriores de Perenelle.

Em O Namorado da Viúva, Ben faz referência à visão dele e de Gil ("O namorado da viúva passou por aqui..."), mas avança nessa historieta dando sua própria versão, como se Flamel o tivesse contado naquela visão, em 1973, ou como se o próprio Jorge tivesse participado das fofocas pelas vielas da Paris de 800 anos atrás, sugerindo que o que se dizia entre o povo era outra coisa: que Flamel "não daria conta do recado".

Naquele mesmo maio de 1974, Jorge Ben escolheu O Namorado da Viúva como um dos singles do disco, incluindo a canção no repertório de uma apresentação icônica no Fantástico, da TV Globo – onde aparece rodeado por figuras manipulando poções, em roupas semelhantes à visão de um ano antes, com Gil.

Jorge Ben em 1974 (Itaú culutral)

O caminho alquímico

Até A Tábua de Esmeralda, é difícil encontrar referências (mesmo codificadas) à alquimia em álbuns anteriores de Jorge Ben Jor. Antes, ele havia lançado Força Bruta (1970) e outro trabalho cultuado da sua discografia: Jorge Ben, de 1969, onde se pode ouvir, por exemplo, um dos hinos informais do Brasil: País Tropical.

Na pesquisa que fez sobre A Tábua de Esmeralda, à época na Universidade Federal de Alfenas (Unifal), em Minas Gerais, Susana de Andrade concluiu que o disco atravessa três grandes temas transversais: a negritude, o misticismo e a alquimia.

"Ele tentou reunir as coisas sobre as quais já estava trabalhando, como a questão racial, com o que estava lendo ali naquele momento", explica ela. No Fantástico, semanas depois do LP chegar às lojas brasileiras, o próprio Jorge disse que o álbum era uma verdadeira "alquimia musical".

Aquele já era, na verdade, um assunto que cruza a vida de Jorge Ben Jor desde sempre. Em 1976, à extinta revista 'Ele Ela', ele revelou que um dos seus avôs era membro da Ordem Rosacruz – um grupo que há mais de um século se dedica a estudos místicos – e que foi nos livros do patriarca que descobriu a alquimia. "Comecei a admirar a maneira deles verem o mundo, a perseverança no trabalho...".

Para Kamille Viola, porém, tudo se deu mesmo quando Ben leu textos originais de Tomás de Aquino, no Seminário São José, no Estácio, no Rio de Janeiro dos anos 1950. Canonizado como santo católico em meados do século 14, Aquino é lido hoje como o grande responsável por embutir a filosofia aristotélica na fé cristã, tentando amalgamar, assim, razão e religião.

Em paralelo, sempre existiu a história de que, nos bastidores da Igreja, Tomás de Aquino também era alquimista – um relato que perfurou os séculos e chegou até um adolescente Jorge na arquidiocese carioca.

"Ele tem uns textos lindos. Aprendi latim por causa dele", disse à Trip em 2009, citando nominalmente a Suma Teológica, um calhamaço repleto de soluções a perguntas sobre a existência e a relação da humanidade com Deus escrito na metade do século 13.

Em Assim Falou Santo Tomaz de Aquino, do álbum seguinte a TábuaSolta O Pavão (1975), Ben musicou um dos artigos da 13ª questão da suma, sobre a semelhança entre Deus e os seres da Terra.

A Tábua de Esmeralda também o menciona em uma faixa aparentemente paralela à discussão alquímica do restante do álbum, Eu Vou Torcer ("Pelo Santo Tomás de Aquino/ Pelo meu irmão...").

"O Jorge se interessa muito pela Idade Média. Foi um período em que o invisível estava presente na vida das pessoas, em que os sonhos eram vividos como realidade", explica Viola.

"Mas ele nunca parou de falar sobre alquimia. Foi acumulando referências e as colocando nas músicas ao longo da carreira. Esse medievalismo, aliás, se liga totalmente ao interesse pelo processo alquímico. E, em 2020, ele me disse que estuda alquimia até hoje", prossegue.

Capa francesa de 'A Tabua de Esmeralda', sem as imagens clássicas de Flamel


Al-quimia

Uma audição simples de A Tábua de Esmeralda pode fazer crer que a alquimia é, antes de tudo, o procedimento mágico de tentar transformar metais comuns, como o chumbo, em ouro ou na pedra filosofal – caminho para a vida eterna.

Na primeira música do disco, Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas, por exemplo, Ben chega a explicar como isso seria objetivamente possível por meio de uma sequência de etapas químicas: desde a trituração e a fixação dos materiais brutos, passando pela destilação e a coagulação até, enfim, se chegar à transmutação de uma coisa em outra.

Mas, nas entrelinhas, as letras de A Tábua de Esmeralda tentam justamente ir além disso, explorando o lugar que Jorge Ben Jor ocupa dentro do amplo espectro de interpretações sobre o que a alquimia é, de fato.

É como se, da mesma forma que na Idade Média, ele tivesse escondido seus próprios segredos alquímicos nas composições do álbum, fazendo-as funcionar, ao mesmo tempo, como canções meramente comerciais.

Segundo a historiografia, o primeiro texto sobre alquimia que se tem notícia é de um grego: Bolos de Mendes, no século II a.C, reproduzindo o saber que vinha se acumulando desde os processos metalúrgicos com o ferro, por volta de 1.200 a.C.

O berço da alquimia, porém, é Alexandria, no Egito, onde se transformou em um "sistema de pensamento sincrético", como define Frank Greiner, professor de Literatura na Universidade de Lille 3, na França, e autor do livro Alquimia, de 1991. "Já era ali uma filosofia que buscava reconciliar estruturas mentais distintas: uma racional e científica, outra mística, remetendo a modos de conhecimento que transcendem a razão", explica ele.

Um dos códigos mais profundos que Jorge Ben talvez tenha deixado em A Tábua de Esmeralda está nesse acontecimento histórico, na etimologia da palavra "alquimia".

Segundo estudos, os egípcios se referiam a alguns processos com substâncias que já dominavam, como o usado para embalsamento dos seus mortos, por exemplo, de khemeia – de onde se deriva a palavra "química".

Quando práticas semelhantes foram adotadas pelos árabes, tempos depois, ainda antes de atingir o Ocidente, foram chamadas ali de "al kimiya", que significava "pedra filosofal".

Isolada, porém, a palavra "kimiya" tem raiz em uma língua falada apenas pelos cristãos egípcios, os coptas, e cuja tradução é, simplesmente, "negro". De acordo com Greiner, era assim porque "kimiya" era o jeito como eles chamavam a cor da argila nas margens do Rio Nilo e, por consequência, o próprio Egito: "terra negra".

Considerando o momento em que Jorge Ben gravou o disco, no auge do movimento pelos direitos civis dos negros, nos Estados Unidos, ao qual ele se aproximou, e logo após ter lançado um álbum chamado Negro É Lindo, além de ter duas canções falando diretamente sobre negritude (Zumbi Menina Mulher da Pele Preta), essa não parece ser uma coincidência.

Ao contrário, sugere que, no centro dos mistérios de A Tábua de Esmeralda, a alquimia é realçada, antes de tudo, como um sistema de conhecimento filosófico africano – e negro.

"Não sei se é um código consciente, se o Jorge pensava no nome [alquimia] em si", sugere Viola. "Mas ele, com certeza, se deparou com histórias de civilizações negras antigas de onde surgiu grande parte do conhecimento da humanidade. Como sempre procurou exaltar a cultura negra, isso deve ter chamado a atenção dele".

Quando a alquimia chegou ao Ocidente, pela Espanha muçulmana, no século 12, ela se cindiu ainda mais entre a experiência metafísica e uma ciência que serviria, muito tempo depois, aos anseios iluministas. Nicolas Flamel, que morreu em 1418, foi um dos nomes mais relevantes da perspectiva mística, para quem o processo alquímico era tanto transmutação da matéria como aperfeiçoamento do espírito – a mesma interpretação, aliás, de Carl Jung, já no século 20.

A inclinação de Jorge Ben à alquimia de Flamel – figura que ele teria visto com Gil, em Paris – sugere, de bate e pronto, que ele se relaciona com o processo alquímico também pela via do misticismo. Nesse sentido, ambas as coisas estariam mais amalgamadas do que parece. "Ele [Flamel] é meu muso", chegou a dizer à Trip, em 2009.

Mas isso não o impediu de abordar o lado mais científico da alquimia, como se vê em O Homem Da Gravata Florida.

A canção é comprovadamente baseada em Philippus von Hohenheim, um suíço do século 17 obcecado por procedimentos médicos herdados do passado, assim como por conhecimentos alquímicos, e que os usou não apenas para erguer uma vertente da ciência – a iatroquímica, para a qual os organismos são resultado de reações químicas diversas – como para criar medicamentos com eles.

Os relatos da época dão conta de que Philippus era um homem demasiado orgulhoso, e a alcunha pela qual ficou conhecido, Paracelso, o prova: era uma expressão que significava, em latim, "melhor do que Celso", em referência ao grande médico da Roma do primeiro século pós-Cristo, Aulo Cornélio Celso.

"Depois daquele período [de Paracelso], a alquimia – que admitia uma solidariedade orgânica entre a ordem das coisas e a ordem humana – torna-se eminentemente suspeita aos olhos dos eruditos", conta Greiner. "Ela sobreviveu, então, entre rosacruzes e maçons, por meio do simbolismo, ou por meio daqueles que seguiram trabalhando secretamente em laboratórios, como Fulcanelli", prossegue ele, citando o autor do livro O Mistério das Catedrais, publicado em 1926 e com grande influência sobre Ben.

Essa "solidariedade orgânica" está na estrutura de quase todo o disco – e, mais do que isso, da própria visão de mundo de Jorge Ben. "Existe toda uma corrente que diz que a alquimia não passa de uma metáfora: que transformar chumbo em ouro é um jeito de falar sobre o desenvolvimento espiritual. Na Idade Média, para além dos processos químicos, se dizia que o real objetivo era a evolução do espírito. Ele levou esse lado em conta também", explica Kamille Viola.

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