segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Crônica de segunda

 

Deus e eu, na praia ou no sertão

         Quem durante essa pandemia não sentiu solidão, tristeza, angústia, só pode ser doente da cabeça. Ou então já conseguiu fazer da solidão uma aliada e não uma inimiga. Certa vez um amigo me disse: “Quando estou na roça, mesmo estanho em casa, ou acampando no mato, ou na praia, sozinho, eu me sinto bem. Mesmo sabendo que ali existem animais selvagens como onças, eu olho à noite para o céu, vejo a vastidão do universo, e sinto a presença de Deus”. Eu entendi imediatamente o que ele quis dizer. Porque eu também sou assim. Na verdade a solidão se fez presente em minha vida desde muito cedo. Apesar da casa cheia, eu não tinha irmãos da minha idade, nem muitos amigos para brincar.  Uma doença me colocou na cama por seis meses. Quando ia pra roça, quase sempre brincava sozinho porque os garotos da minha idade estavam ajudando as suas famílias trabalhando nos roçados e nas plantações. E eu comecei a ficar arredio a pessoas estranhas. Só quando adolescente e fui para o ginásio, passei a conviver uma parte do tempo com pessoas da minha idade. Mas não fiz muitos amigos. Só mais tarde comecei a namorar, ir a festas, viagens, e aí eu desasnei, como se costuma dizer. Mas mantive o gosto por ficar sozinho, mesmo que fosse por alguns momentos.

Entre os 13 e os 15 anos, eu passava mais tempo brincando com os amigos que moravam próximo à minha casa, e quando não os encontrava, metia a cara nos livros, não para estudar, mas ler qualquer coisa de ficção que eu gostasse. Estava sempre indo pra roça, onde eu gostava de acampar perto de algum lago e passar ali dois ou três dias, com amigos, pescando, bebendo, conversando, contando estória, comendo o que o lago nos oferecesse ou o que levamos de casa. Quando fiz isso sozinho a primeira vez, senti um pouco de medo. Mas gostei e passei a fazer isso com mais frequência. Inclusive em praias. Mesmo depois de casado, mantive o hábito e, às vezes, ficava até uma semana acampado. Eu e Deus. Como diz na música: “Nunca vi ninguém viver tão feliz como eu no sertão”. E era sempre perto de uma mata ou uma praia, de um rio ou um lago. Rede ou uma barraquinha pra dormir, à noite assistir a um show no céu, ao som da mata e das águas. Meus pensamentos voavam livres, ruminava problemas e encontrava soluções, conversava com Deus e me sentia bem próximo D’Ele. Voltava pra casa sempre renovado, descansado, feliz, pronto para a lida diária. E minha mulher parecia perceber isso, e entender, porque nunca reclamou.
         Levei quedas, sustos, passei alguns momentos difíceis e ruins, mas sempre valia a pena. O amigo que me falou que gostava dessa coisas, certa vez levou um susto danado. Na região onde ele estava acampado, ele armou a rede pra dormir ao relento. Um vaqueiro que morava perto, lhe dava um certo apoio, mas na maior parte do tempo, ele estava só. E o vaqueiro tinha lhe contado que algumas cabras tinham sido mortas por onças pardas. Mas elas ficavam lá no mato. Não se aproximavam de casas ou fogueiras. Certa noite ele estava bem relaxado na rede, contemplando o céu estrelado, quando um animal de quatro patas e peludo, pulou em cima dele. Ainda bem que não morreu de enfarto, porque era apenas o cachorro do vaqueiro que havia se afeiçoado a ele.

Comigo o caso foi mais brabo. Eu estava na roça, mas estava na casa da fazenda, que tinha luz a motor. Quando resolvi dormir, peguei uma lanterna e a chave da casa do motor, e lá fui para desligá-lo. Apaguei, tranquei a porta, e quando fui me dirigindo de volta para a casa da fazenda, passei pelos currais, e a luz da lanterna clareou no curral dois olhos vermelhos como fogo a cerca de 1.5 metro do chão. Não conheço nenhum animal com aquelas características, que pudesse estar ali, àquelas horas. Só sabia que não era vaca, bezerro, cachorro, raposa, nada correspondia à altura nem o tamanho dos olhos. Os cabelos da nuca e dos braços ficaram todos eriçados, e eu gritei, já me preparando para o pior: Quem está aí? “Sou eu, seu Cristóvam”. Quando me aproximei com a lanterna vi que era um rapaz, tirador de leite, negro, de short preto e sem camisa, que trazia nos braços um filhote de cachorro, cujos olhos a lanterna revelou. Obviamente, não tive um enfarto, porque senão não estaria aqui pra contar essa estória.

 NE: Publicada em 2021.

Um comentário:

Anônimo disse...

Essa é uma história das boas...