quinta-feira, 26 de outubro de 2023

O estrume e o belo

Nos dias de febre minha mãe plantava flores. Em canteiros, vasos originais ou improvisados. Noutros, sua lavoura era verduras e hortaliças. Regularmente mandava pegar galeotas de estrume de boi no curral e fazia uma boa mistura com a terra que usava. Com as verduras do esterco matava nossa fome; com as rosas nascidas do estrume resistia à sua vida dura.

Sócrates - filósofo primordial - dizia que “belo é o útil”. Não sei se incluiu o estrume nesse pensamento - talvez pensar em merda não faça um filósofo. Minha mãe nunca leu Sócrates, mas dizia que até de coisa podre é possível tirar algo bom. Com a batalha campal que travava para obter o útil, acho que ela o esbofetearia sem dó por achar isso belo.
Ela fazia milagres para viver – e viver certas vidas é um milagre do cacete. Milagre aqui não tem nada a ver com Deus, que vive lá em sua distração eterna e contemplativa, sedentário imutável, enquanto a gente apodrece aqui, esperando o paraíso, atravessando o inferno - e o politicamente correto, que é a mesma coisa - todos os dias.
Não fique horrorizado comigo por ler isso, afinal, todos temos alguma podridão encoberta: tudo que é humano - e podre - não me é estranho. A lei, as tábuas da fé, a cultura, é que tem dado bons modos às nossas pulsões primitivas. Não que sejamos em todo ruins, afinal, cultivamos desertos como jardins às avessas e escrevemos ridículas cartas de amor. Tampouco ouvimos Beethoven sem que parte de nossa não imundície seja salva no céu.
Não quero apontar meu dedo – contaminado de humanidade - para este ou aquele, mas não posso deixar de dizer que a podridão está dando nas vistas, botando protagonismo de dar medo. Não que já não tenhamos feito impérios nas lâminas das espadas, Inquisições, escravidões, genocídios, mutilações genitais, fornos crematórios, devastações radioativas, e outras barbáries no atacado e varejo, mas era de se esperar que a banalidade do mal não botasse as manguinhas de fora depois de tantos reveses e civilização.
Mas não é o que vemos. O humano segue sedento de poderes e desejos, sem hesitar em dilacerar outros humanos - mulheres, velhos, crianças - de todas as formas, em sua eterna savana. Muitas vezes sob aplausos de apoiadores que se cegam. É gente que virando estrume, carregado na galeota e semeado nas plantações de minha mãe não mistura, não mata fome, não dá beleza de flor. Porque há estrume que é só uma merda.

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