Apesar
do avanço, no entanto, não são todos que a enxergam como uma aliada da música,
visto que ainda há muito o que se discutir em relação à tecnologia.
Umas das discussãos vão além da propriedade intelectual ou direitos autorais, é muito mais sobre se músicos perderão seus empregos ou se criatividade dos artistas irá diminuir, por exemplo.
Mas isso não é novidade, como explica Ana Clara Ribeiro, advogada especialista em Propriedade Intelectual com foco na indústria musical, em entrevista ao Byte.
“Quando surgiram os sintetizadores digitais, pensaram que todos os músicos iam perder o emprego. Depois, quando surgiu o sampling, acharam que ninguém mais ia compor e que todos usariam a mesma coisa sempre”, afirma.
Porém, todas as preocupações são suposições. A única garantia atual é que já existe uma transformação com o uso de inteligência artificial na indústria, desde a produção, nteração com os fãs e até a criação de avatares/músicas gerados por IA.
Ascensão
da inteligência artificial na indústria musical
O uso da IA já estava presente na indústria da música antes do estouro do ChatGPT, que disseminou o que a tecnologia pode fazer na rotina da vida das pessoas.
As estações de áudios digitais (DAWs), por exemplo, são softwares que permitem fazer gravação, edição, mixagem e produção. Ela é utilizada para limpar a uma track, samplear, etc. Algumas versões deste software já usam IA.
“Já
era bem comum de ser usado como uma funcionalidade um pouco mais acessória para
acelerar e otimizar alguns processos que os produtores coordenam quando estão
fazendo músicas”, afirma Ana Clara.
Thiago
Melo, produtor musical, destaca que mesmo com todas as funções que a
inteligência artificial pode disponibilizar na hora de produzir, é o ser humano
que dá os comandos, e isso é extremamente importante para o processo artístico.
“Na busca por resultados rápidos, [a IA] frequentemente faz com que o processo orgânico seja deixado de lado”, disse Melo, ao Byte. “É importante que o produtor use ferramentas de inteligência artificial para otimizar o processo, e não para substituir suas próprias ideias no contexto de uma obra musical.”
Outro uso da ferramenta, segundo Ana Clara, é o de produzir faixas para bibliotecas de áudio e trilhas brancas, que geralmente aparecem no fundo de vídeos. Na visão dela, esse aspecto é mais aceito pelo público já que não exige uma demanda criativa muito grande.
Ainda na parte de composição e produção, existem ferramentas que utilizam a tecnologia para colaborar com artistas, como o MuseNet, da OpenAI (que desenvolveu o ChatGPT), criado em 2019, e o Magenta, do Google, de 2016. Tais ferramentas criam harmonias, arranjos e podem também compor músicas.
Mas o que tem crescido mesmo na indústria são os artistas ou avatares gerados por inteligência artificial. Eles são personagens criados pela tecnologia que compõem, interagem e cantam suas canções, tudo gerado pela IA — ainda que a repeção do público não seja tão positiva assim.
No fim de 2023, a Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI(, que representa a indústria fonográfica em todo o mundo, compartilhou resultados sobre o que as pessoas pensam em relação à inteligência artificial do maior estudo sobre fãs de música do mundo.
A pesquisa, que analisou mais de 43 mil pessoas em 26 países, mostrou que 79% acham que a criatividade humana continua essencial para a criação musical. Outros 76% acham que a música ou os vocais de um artista não devem ser usados ou ingeridos pela IA sem permissão.
Além disso, os entrevistados mostraram concordar que a IA não deve ser usada para clonar ou personificar artistas sem autorização (74%).
Artistas
feitos por IA
Ainda
assim, os dos maiores gêneros que engajano no cenário, o mundo K-Pop, por
exemplo, já atua com artistas feitos por inteligência artificial ou com
avatares virtuais. Os grupos Eternity, Superkind e MAVE fizeram estreias em
2021, 2022 e 2023, respectivamente.
Desenvolvido com tecnologia IA, o grupo feminino Eternity possui 11 integrantes e desde seu início, tinha o objetivo de desafiar o limite entre o entretenimento real e virtual.
A
empresa responsável pelo grupo, a Pulse9, criou os avatares por meio de deep
learning. Após gerar 101 rostos, dividi-los em quatro categorias (inocente,
fofo, sexy e inteligente), quem bateu o martelo para decidir quem “entraria” no
grupo foram os fãs, em uma votação.
Em seguida, os designers da empresa começaram a trabalhar nas animações das personagens vencedoras, utilizando um filtro de deepfake. A Pulse9 informou, em entrevista à BBC 100 Women, que adota as diretrizes éticas de Inteligência Artificial da União Europeia ao criar seus avatares.
No caso do grupo feminino MAVE:, criado pela Metaverse Entertainment, utiliza a captura de movimento para as coreografias, a parte mais difícil de gerar somente com IA, por conta da complexidade dos movimentos. Além da dança, há talentos humanos que cantam por trás dos avatares.
Para Ira Akter, uma estudante e YouTuber de 12 anos de Bangladesh, chamar o grupo somente de "IA" seria um insulto aos integrantes de toda a equipe que trabalha por trás delas, incluindo as intérpretes, coreográfas e designers.
“As garotas por trás delas ainda são um mistério. Mas quem quer que esteja [por trás da criação] são realmente ótimas cantoras”, disse ao Byte.
Muito do K-Pop depende da conexão do ídolo com o fã, e aqui há uma faca de dois gumes: na criação de conteúdo ou em uma turnê.
Para fins de comparação, MAVE consegue fazer entregas rápidas mesmo que outros grupos de K-Pop, pois precisa de mais tempo para ser produzido. Um único vídeo no YouTube pode levar semanas para ser criado.
Por outro lado, em um grupo virtual, é possível fazer uma turnê mundial de forma muito mais fácil, podendo estar em qualquer lugar do mundo em questão de segundos — mesmo que de forma virtual.
De modo geral, as limitações físicas de cansaço, voos e agenda não existem e também não existe o medo de se machucar enquanto dança ou ficar doente, por exemplo.
Ira, no entanto, não vê grandes diferenças entre MAVE e seus companheiros de indústria feitos de carne e osso. Apesar de demorar para ter novidades de suas idols favoritas, ela aceita esperar.
“Como fã de vários grupos, eu diria que ser fã de grupos virtuais é bom, não melhor. E todos têm gostos diferentes em música e K-pop também. Mas para mim, os grupos virtuais devem ser tratados normalmente na indústria, já que eles fazem parte do K-pop”, explicou.
A dualidade entre a inovação tecnológica e a necessidade de conexões humanas é uma característica forte do cenário atual da música. Enquanto a tecnologia permite novas formas de criação e performance, a autenticidade e a presença humana ainda são altamente valorizadas pelos fãs.
Conexões
éticas e artísticas
Mesmo com um mundo inteiro de possibilidades que a inteligência artificial pode trazer ao mercado da música, os desafios éticos não podem ser deixados de lado. A autenticidade é uma preocupação legítima.
“A
IA permite que você nem precise gravar um vocal, manipulando uma gravação
existente para gerar a voz da pessoa cantando de outra forma. Isso tem
problemáticas do ponto de vista dos direitos da personalidade”, destaca Ana
Clara.
Thiago Melo destaca que a diminuição da participação humana no processo de criação pode ser um problema, já que a ferramenta pode entregar mais rápido e com menor custo, eliminando a necessidade de músicos e outros recursos humanos.
Do ponto de vista empresarial, entregar um produto de qualidade com baixo custo é positivo, mas quando se trata da realidade do artista, não é algo sustentável.
“Utilizar loops sequenciais e outras ferramentas de maneira saudável ajuda a manter a essência do projeto. Caso contrário, o resultado pode ser frio e desconectado da verdade do artista”, afirma Melo.
Ele reforça que o papel do artista é essencial para a conexão com os fãs. “A automação pode gerar dinheiro e resultados, mas sem o toque do artista, não há conexão verdadeira. Ferramentas digitais devem ser usadas para otimizar o tempo, não para substituir a essência da obra”, enfatiza.
E
o que diz a lei?
Já no ponto de vista jurídico, a proteção de obras criadas por IA é complexa. No Brasil, a lei de direitos autorais prevê que uma obra protegida deve ser criada por um humano, “com a criação do espírito”.
Isso levanta a questão da proteção de músicas geradas por IA, destacando a necessidade de legislação específica para abordar a nova realidade. Segundo a advogada Ana Clara, existem mais de 40 projetos de lei no Congresso sobre regulamentação do uso de IA no Brasil.
Na Coreia do Sul, de onde vêm a maioria dos grupos feitos por IA, a lei fala que o robô não pode ser autor, mas o Ministério da Cultura já lançou diretrizes para proteger obras criadas com a ferramenta, de forma que as empresas de entretenimento consigam proteger seus investimentos e marcas.
“As empresas de K-pop usam outros mecanismos contratuais e de propriedade industrial para proteger esse direcionamento criativo. Por exemplo, concorrência desleal e aproveitamento parasitário. Isso não é copiar uma obra, mas fazer uso indevido do investimento que uma empresa fez para criar aquele conceito”, explica Ana Clara.
Mais
papéis para IA na indústria
Além da criação musical e influência no modelo "fã", a inteligência artificial também pode desempenhar outros papéis importantes para quem trabalha nessa indústria. Plataformas de streaming utilizam algoritmos avançados para entender melhor as preferências e comportamentos dos ouvintes.
O próprio algoritmo do Spotify cria recomendações diárias com base em dados de preferências do usuário hpa alguns anos.
“Atributos como gênero, idade e localização podem nos ajudar a oferecer sugestões melhores para todos os nossos ouvintes”, afirma Brian Berner, chefe de Vendas e Publicidade do Spotify da América do Norte, em seu blog pessoal.
Não há uma data específica sobre a implementação do sistema atual, mas em 2017 a companhia adquiriu a Sonalytic, que usa machine learning para fazer recomendações.
Na outra mão, também existe a distribuição de música. A ONErpm é uma empresa que atua justamente nessa área, trabalhando com diversos artistas, selos e criadores de conteúdo para divulgar seus projetos.
“A IA também é aplicada em análise de dados, ajudando a entender tendências e preferências dos ouvintes. Temos usado ferramentas de IA dentro da ONErpm para evitar fraudes e otimizar nossos planos de marketing”, afirmou Arthur Fitzgibbon, presidente da ONErpm Brasil, em entrevista ao Byte.
Permissões
e royalties
Outra questão é o pagamento de royalties que vem das músicas. Nesse aspecto, a advogada ouvida pelo Byte afirma que no Brasil, uma música cantada por IA não tendo um humano que cantou, não há um titular dos direitos conexos, que é o direito sobre a interpretação, segundo Ana Clara.
“Se sou uma cantora e gravo uma canção, posso receber royalties pelo meu trabalho de interpretar. Se não tem humano cantando, não tem humano para receber essa parte, então essa parte vai para as empresas e outras pessoas cadastradas para receber”, disse.
Na ONErpm, há acordos específicos com os desenvolvedores para o pagamento de royalties, assim como uma abordagem mais colaborativa.
“Na distribuição que é feita aqui, fazemos o pagamento da distribuição ao proprietário dos fonogramas, que pode usar a ferramenta de royalty share para redistribuir os direitos artísticos”, ressaltou o presidente Fitzgibbon.
Ele também lembra que algo que poucos prestam atenção na hora de produzir músicas com inteligência artificial é que essas tracks não possuem os direitos de comercialização.
“Caso queiram usar, é preciso negociar e pagar antecipadamente os royalties para evitar disputas de copyrights. Existem muitos casos de artistas de funk e trap que têm usado ‘beats’ criados nesses serviços, sendo processados meses depois e perdendo todos os ganhos”, disse.
Uma forma de “encarar” o futuro da música com IA foi o que a cantora Grimes, ex-esposa de Elon Musk fez. Ela já declarou publicamente que qualquer um tem autorização para usar a voz dela em faixas feitas pela inteligência artificial, desde que divida os royalties com ela.
“A voz é protegida a título de direito da personalidade. Isso não é direito autoral, mas sim direito da personalidade, direito moral”, reforçou a advogada Ana Clara, sobre a questão da permissão.
O
futuro
A análise dos impactos da IA na indústria musical ainda é prematura, mas os especialistas ouvidos pelo Byte acreditam que ela vai continuar desempenhando um papel significativo, até porque o que é possível aceitar e entender é que a inteligência artificial não vai embora.
Com essa perspectiva, Ana Clara vê que num futuro próximo todos irão se acostumar e vão ver a ferramenta pelo o que ela é.
“Com o tempo, vamos nos acostumar com a IA da mesma forma que, na indústria, já tivemos vários momentos em que achamos que a música ia acabar. No fim, tudo se assimilou e fez parte da nossa cultura, e a música continuou existindo”, disse.
Já para o CEO da ONErpm,a IA deve continuar nos pontos em que já domina e melhorá-los, como na personalização de recomendações de música, avanços nos passos de produção e até mesmo pode criar novos gêneros e estilos.
“O potencial é enorme, não somente para a criação musical, mas, principalmente, como ferramenta de promoção”, disse.
O produtor musical Thiago Melo ressalta queo sucesso dessa integração dependerá de encontrar um equilíbrio entre inovação tecnológica e preservação da autenticidade e conexão humana.
“O futuro da música deve ser equilibrado: usar recursos para melhorar a obra sem deixar que a IA faça todo o trabalho. As ferramentas vão evoluir, mas a essência artística não deve ser perdida”, disse.
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