A perseguição online às mulheres existe desde o início da
internet. A todo momento, os homens pensam em novas formas de invadir a
privacidade das mulheres. Surgiu uma nova plataforma que parece “facilitar” a
vida de stalkers e abusadores na internet. É URGENTE discutir a
responsabilidade masculina nesse cenário.Lia Sérgia Marcondes
Voltemos no tempo para entender onde começa essa história. Desde o Paleolítico, o registro de forma sexualizada da figura humana desperta o interesse das pessoas. O interesse em registrar, em toda forma de arte, tudo que fosse relacionado ao sexo, é algo que trespassou a Grécia Antiga, o Império Romano, a Índia, atravessando o tempo e os continentes, esbarrando na “muralha” da Santa Inquisição. O interesse sexual tornou-se então algo obsceno, pecaminoso. Como Freud já explicitou em seus estudos, da repressão nasce a perversão.
![]() |
Uma vez que o interesse pelas representações sexuais e
pelos corpos nús nunca deixou de existir, a partir da evolução tecnológica que
popularizou as fotografias, a literatura erótica ganhou força e fãs pelo mundo.
E o resto da história todos sabemos, da Playboy ao PornTube.
Na Era Digital, os homens deixaram de se restringir
apenas aos conteúdos eróticos que encontravam online. Tornou-se um lugar comum
que muitos deles se sentissem confiantes pelo falso anonimato da internet, para
pedir fotos e vídeos íntimos de mulheres que, na maioria das vezes, eles sequer
conheciam. Porém, esse ato pode ser interpretado como assédio sexual, que é
crime.
Ainda são minoria os homens que compreendem que o ato
pedir ou comprar imagens íntimas (sem consentimento ou em condições
questionáveis), pode ser um flerte com o código penal. Em muitos países, a
simples solicitação de conteúdo íntimo pode ser interpretada como assédio
virtual, passível de investigação policial e, em casos mais graves, condenação
criminal.
Em um mundo onde a tecnologia avança rapidamente, surgem
práticas que desafiam os limites da ética e da legalidade. No mês passado,
surgiu nas redes uma plataforma que oferece uma especie de serviço de
“concierge” de fotos e videos íntimos. Nela, os homens pagam, sob anonimato,
para que a empresa se aproxime de uma mulher e peça fotos, vídeos ou objetos
pessoais em seu nome.
A escritora Sheylli Caleffi, ativista pela erradicação da
violência sexual e online, recebeu de uma seguidora prints de um contato
inusitado, feito por uma suposta intermediária (que se autodenomina “Jú”)
da plataforma Joopter. No reels, Sheylli nos conta como a “Jú”, de forma
simpática, avisa à tal moça que ela tinha um fã disposto a oferecer a módica
quantia de R$127 (já sem a taxa moderadora da Joopter), por um video dela. O
vídeo deveria ter cerca de um minuto de duração, no qual a mulher deveria tirar
o sutiã e se mover com os seios à mostra. “Jú” faz questão de ressaltar de que
a seguidora só deveria aceitar a proposta se estivesse “confortável” com o
pedido.
Curiosa, a seguidora de Sheylli foi dando corda na
conversa. Perguntou se seria possível informar a ela quem havia solicitado o
tal video, e quais garantias a Joopter daria de que o conteúdo não vazaria na
internet. Com um discurso ensaiado e escorregadio, “Jú” diz que a plataforma é
perfeitamente segura, mas que se a mulher não se sentisse bem com o pedido,
deveria recusá-lo. Traduzindo: faz se quiser e não damos garantias.
Se você tem o hábito de pedir fotos íntimas a mulheres
desconhecidas nas redes sociais, talvez esteja achando essa ideia
revolucionária. Nos “becos” da internet, o pedido aparentemente inofensivo pode
se transformar em um verdadeiro pesadelo, para ambas as partes. O ato de
solicitar fotos ou vídeos íntimos a uma mulher, sob a ilusão do anonimato, não
apenas expõe a vítima, mas pode colocar o próprio solicitante em um perigoso
campo minado legal e social.
Em conversa com ex-procurador de justiça Roberto
Tardelli, especialista em Direito Penal e membro da Comissão dos Direitos
Humanos da OAB-SP, avaliamos que essa plataforma não apenas propicia um
ambiente de altíssimo risco para as mulheres, como pode levar a possíveis
golpes ou até mesmo crimes digitais. De acordo com a ONG Safernet, cerca de 70%
das vítimas de exposição de conteúdo sexual na internet são as mulheres. E e
este tipo de crime ainda é totalmente subnotificado.
Segundo Tardelli, desde que a situação não envolva
menores de idade, a oferta do serviço pela plataforma não fere necessariamente
as leis brasileiras: “Não vi crime, porque todas as situações são consensuais e
não há teoricamente ilegalidade alguma em receber por atender a fetiches. Se
essas imagens vão ganhar o mundo virtual depois, é uma questão entre os
contratantes.”, declarou. Embora a atividade não seja tipificada como crime
diretamente, a ausência de controle pode facilitar a prática de crimes (como aliciamento
de menores).
Foto: Site da Joopter / Montagem: Drops de Jogos
No entanto, ainda que não existam denúncias de que a
empresa tenha incorrido em alguma ilegalidade, até o momento, também não
encontramos garantias nos “Termos de Uso” e na “Política de Privacidade” do
site de que contratante e contratados estão livres de problemas legais ou de
golpes, ao utilizar o serviço.
De acordo com o ex-procurador, seria preciso fazer uso da
plataforma para perceber de que forma a Joopter garante o anônimato do cliente,
bem como a segurança de quem vai “vender” sua imagem para satisfazer aos
desejos de um desconhecido. E de que forma eles garantem que uma pessoa, menor
de idade, não estará envolvida na “transação comercial”. Então, nós testamos.
TESTANDO A PLATAFORMA
Solicitamos o serviço da Joopter, usando um nome falso,
data de nascimento falsa, um endereço qualquer e uma conta de e-mail criada
apenas para este uso. Pedimos uma foto singela, do nosso editor abraçando seu
cachorro. Nesse ponto, descobrimos que o valor mínimo exigido é de R$150. A
plataforma fica com 15% deste valor, e o que sobra é o valor que será oferecido
ao “alvo”.
Foto: Site da Joopter / Montagem: Drops de Jogos
No bate-papo com o assistente virtual, a empresa diz as
informações do cliente não serão repassadas para ninguém. A plataforma pede que
o comprador concorde com os Termos de Uso e com a Política de Privacidade do
site, sem apresentar um link para os textos sejam lidos. Os links estão no
rodapé do site.
No texto da política de privacidade, a Joopter diz que o
prazo de armazenamento dos dados do usuário é indeterminado, mas não
apresenta uma justificativa para tanto. Além disso, nos termos de uso citam que
o usuário que adquirir as mídias não pode divulgá-las ou compartilha-las com
terceiros. Porém, a plataforma se isenta de responsabilidade, colocando-se como
mera intermediária.
Uma vez colocadas as especificações do pedido, o
pagamento é realizado por cartão de crédito. Neste momento, foi utilizado um
cartão de crédito cuja titularidade é completamente diferente do nome de
cliente fornecido anteriormente. O pagamento é feito por uma plataforma externa
de pagamentos chamada Stripe.
Foto: Site da Joopter / Montagem: Drops de Jogos
Pedido concluído. De acordo com eles, o cliente receberá
em seu e-mail o retorno informando se o pedido foi ou não aceite em até 10
dias. E garantem que o valor será extornado, em caso de recusa. O único contato
possível é por um endereço de e-mail.
Note que, em momento algum, a Joopter valida a identidade
de quem está fazendo o pedido. Nenhum documento foi solicitado, embora os
Termos de Uso indiquem que apenas maiores de 18 anos podem usar a plataforma.
Poderia ter sido uma criança, um pré-adolescente, usando o cartão de crédito
dos pais, tentando conseguir uma foto sensual de uma colega, vizinha,
professora etc. Nenhuma verificação. Nenhuma garantia.
E por falar em garantia, para além do e-mail com o recibo
que foi enviado para o “cliente”, a plataforma não forneceu mais nenhum outro
dado, que não o e-mail de contato, para o caso do cliente ter problemas com o
reembolso. O que está completamente em desacordo com a legislação vigente no
Brasil.
Na manhã de sexta-feira (08/03), enviamos um e-mail para
o endereço indicado, pedindo à Joopter que dissesse suas informações como CNPJ,
Razão Social etc. Mais de 24h depois, até momento da publicação deste artigo, o
e-mail não foi respondido. Nem mesmo uma resposta automática.
LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
De acordo com os termos de uso da plataforma, “Qualquer
disputa será resolvida no foro da cidade onde está localizada a sede do
Joopter.”. Contudo, em nenhum lugar do texto ou do site há indicação do
endereço da sede da empresa.
Segundo o advogado Guilherme Belmudes, especialista na
área de Direito Empresarial e Tecnologia, o simples fato da Joopter não deixar
estas informações claras em seu site, à disposição dos clientes, viola a LGPD,
CDC e o próprio Código Civil. Ele disse ainda que a empresa pode ser
responsabilizada judicialmente pelas infrações cometidas. “O Marco Cívil da
Internet pode ajudar na identificação do usuário, pois a plataforma precisa
guardar informações de IP dos visitantes, ou seja, judicialmente pode ser obrigada
a fornecer informações do cliente”, declarou.
Belmudes explicou ainda que a política de privacidade
apresentada pela empresa está voltada apenas para os usuários visitantes do
site, mas não contempla os possíveis criadores do conteúdo que será vendido, e
nem mesmo os usuários que adquirem os serviços da plataforma. “Ela não informa
todos os dados que são coletados, citando até “outras informações necessárias”,
de uma forma genérica. Ela também não atende às novas resoluções da ANPD, sem
falar sobre o compartilhamento internacional de dados e não informa os dados do
encarregado (DPO).”, informou o advogado.
Para ele, a forma como a plataforma se diz isenta de
responsabilidade pode ser legalmente questionável, uma vez que a atividade
envolve uma transação financeira na qual ela é a intermediária. A Joopter
também não oferece mecanismos que dêem garantia de que o conteúdo adquirido
pelo cliente não seja vazado, podendo dar margem a pedidos de indenização à
plataforma.
NA BEIRA DA ILEGALIDADE
O falso anonimato de plataformas intermediárias pode dar
coragem a muitas pessoas de fazer algo que não fariam pessoalmente. Pode
parecer tentadora a possibilidade de, sob anonimato, pagar para que uma empresa
entre em contato com uma mulher indicada e solicite fotos, vídeos ou até
objetos pessoais. Embora esses serviços prometam total sigilo ao usuário, a
realidade é que nenhuma plataforma está acima da lei.
Outro aspecto a observar, é que este tipo de site é alvo
frequente de investigações policiais, já que facilitam a prática de atos
ilegais. Qualquer denúncia feita por uma possível vítima pode desencadear uma
apuração que, eventualmente, revelará a identidade do contratante, expondo-o a
processos judiciais que podem provocar impacto devastadores em sua vida pessoal
e profissional, como a perda de emprego, danos à reputação e até mesmo o
afastamento de amigos e familiares.
CONCIERGE DA DEGRADAÇÃO FEMININA
Por mais absurdo que pareça para muitas pessoas, a oferta
financeira para obtenção de imagens íntimas em um Brasil onde a desigualdade
social é tão intensa, pode ser um fator motivador para que mulheres em condição
de vulnerabilidade social aceitem se expor. Pior, adolescentes podem ser
induzidas a vender imagens de seu corpo, uma vez que a plataforma não faz
qualquer verificação de idade.
A prática de solicitar imagens íntimas de uma mulher
esbarra de forma inquestionável na Ética. Pagar para que uma empresa invada a
privacidade de uma mulher é desumanizá-la, tratando-a como um objeto a ser
conquistado, independentemente de sua vontade. Isso não só degrada a dignidade
dela, mas também revela a total falta de caráter e respeito por parte de quem
contrata este tipo de serviço.
O anonimato não é um escudo contra as consequências das
nossas ações. A internet pode parecer um espaço sem regras, mas a lei está cada
vez mais atenta a práticas que violam direitos individuais e coletivos. A
privacidade é um direito inviolável. E a justiça sempre vai encontrar um
caminho para punir os crimes, mesmo aqueles cometidos no suposto anonimato.
Lia Sérgia Marcondes - Mulher, mãe, cozinheira
e jornalista, não necessariamente nessa mesma ordem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário